Foi então a cocretização dum sonho.
Foi então a cocretização dum sonho.
Hoje, trinta e tal anos passados, interrogo-me e pergunto ?
Valeu a pena ?
Disse o Poeta e com razão:
Tudo vale a pena, quando a alma não é pequena.
Concordo.
Como já antes disse, nasci na cidade da Covilhã, e devido à industria de lanifícios que por lá proliferava, era aquela uma cidade onde o trabalho era o lema e o trabalhador, " mandava ".
Como em qualquer cidade fabril no mundo, são estas forçosamente terras de luta, e onde as contestações são normais e frequentes.
Veja-se o que se passou em meados do século XIX e principio do século XX, nas principais cidades da Russia, da Inglaterra, dos Estados Unidos, de França e de muitos outros países do mundo.
Aliás todo o Século XX, foi um Século de luta, luta por melhores condições de trabalho, e lutas ideológicas.
Mas antes, muito antes mesmo, em meados do século XVIII, foi em Inglaterra que começou a grande mudança, que começou a Revolução Industrial.
Foi a invenção de máquinas que produziam muito mais, do que o habitual até aí, trabalho manual.
Foi precisamente na industria de lanifícios que primeiro se fez notar tal evolução, tendo sido as máquinas de fiação e tecelagem as pioneiras.
Primeiro foi a força hidraulica, e posteriormente o vapor que moviam os veios transmissores, que atravez de correias por sua vez moviam as máquinas.
Foi Newcomen quem inventou a máquina a vapor, que mais tarde, viria a ser aperfeiçoada por James Watt.
Depois de descoberta a força do vapor havia que colocá-lo, ao serviço da comunidade, doutras maneiras, tanto mais que havia que transportar as mercadorias confeccionadas; foi assim que em meados do século XIX, surgiram as vias de caminho de ferro, que se espandiram rápidamente por todo o Mundo, e cujas carruagens, eram rebocadas por maquinas a vapor.
Com a invenção dos altos fornos, a possibilidade de construir cada vez mais e duraveis máquinas estava ao alcance do ser humano, que aproveitou a situação.
Foi a corrida desenfreada para as cidades, e os campos, ficaram a pouco e pouco abandonados, tendo certos países, em especial a Inglaterra, ter tido a necessidade de começar a importar géneros alimentícios de que até aí era autosuficiente.
Nessa altura, começaram a aparecer os problemas com os salários e condições de vida, que levaram a lutas a que ainda hoje assistimos a nosso lado, todos os dias.
Quando as máquinas eram movidas a energia hidraulica, as fábricas tinham que se localizar junto a rios ou ribeiras onde as grandes rodas,
identicas às dos moinhos iam buscar a força motriz necessária, mas depois do aparecimento da máquina a vapor, puderam em muitos casos ser transferidas para junto das cidades, em grandes edifícios parecidos a quarteis, para melhor conseguirem mão de obra.
Na Covilhã tambem desde há muito, mas com maior incidência há cerca de um século, as contestações eram o pão nosso de cada dia, e por vezes andava tudo numa roda viva, para por exemplo tentar apanhar os panfletos, que pela calada da noite, homens de esquerda, não necessariamente comunistas por lá espalhavam.
Todos sabiamos, inclusive os miudos como eu, na altura com uns 8 ou 10 anos, de que seria um perigo se alguem fosse encontrado com eles.
Estavamos na altura podemos dizer, e na sua máxima de força o que se veio a designar por Estado Novo.
O governo de então, fazia por seguir os parâmetros traçados por Adolfo Hitler e Mussolini, sendo a Pide e a Legião Portuguesa, os braços que o sustentavam.
Tambem os jovens que frequentavam o ensino, eram obrigados a ingressar na Mocidade Portuguesa, cópia da Juventude Hitleriana.
Era nas estradas do Tortozendo, Teixoso e da Aldeia de Carvalho, que estes panfletos, eram espalhados mais amiude, pois era por elas que todas as manhãs, circulavam a pé, milhares de operários e operárias a caminho do trabalho.
Nesses anos aprendi, até na escola, que a vida não era de modo algum um mar de rosas, ao ver o estado em que alguns dos meus colegas ali chegavam, contando da prisão dos Pais.
Quando isso acontecia, e foram algumas de que me lembro, todos nós ficavamos como que aterrorizados, tentando pensar quem seria o próximo.
Hoje, mais de cinquenta anos passados sobre estes factos, que muitos jovens julgam não ser possível terem existido, ainda sinto por vezes um arrepio, ao pensar que até a simples palavra "vermelho", era uma palavra a "evitar", por ser a usada para indicar os comunistas, sendo "aconcelhados" a dizer "encarnado".
A insegurança era tanta, que já no ensino secundario, assisti a factos simplesmente de espantar.
Recordo por exemplo este:
Tinha no colégio que então frequentava no Fundão, pois na Covilhã só se podia estudar na altura no Liceu até ao 2º Ano, um professor que tinha sido o Reitor do Liceu de Dili em Timor, e que por razões pouco claras, tinha sido obrigado a voltar a Portugal.
Havia um colega nosso, andava eu no então 3º ano, ( hoje 7º ano ), portanto não teria mais que 12 ou 13 anos, que se negou a comparecer numa 4ª feira à tarde, às actividades da Mocidade Portuguesa, dizendo que estava adoentado.
Pois bem esse Sr. Doutor, telefonou para a Polícia e mandou ir busca-lo a casa, pois segundo ele, o estar adoentado, não era razão suficiente para se faltar a uma aula, onde se apendia a marchar e a servir o Estado.
Já agora recordo que só podiamos faltar seis vezes por ano a essas aulas, sobre pena de chumbarmos, e que se efectuavam todas as 4ª feiras à tarde, e sabados de manhã, em todas as escolas do país.
Com isto quero dizer, que todos os que frequentámos o ensino secundario antes do 25 de Abril, embora nos ultimos tempos com uma menor rigidez, eramos obrigados a ter treino paramilitar nas escolas,
que como única vantagem ao fim de tantos anos, tinha o de não fazermos os primeiros três meses de recruta, aquando da incorporação militar.
Havia mais uma vantagem, mas apenas para quem tinha aptidões para certos desportos, como o voleibol e andebol por exemplo, pois parte desse tempo podia ser substituido por treinos dessas modalidades.
Os outros, os que não conseguiam ser "bons", passavam o tempo todo a marchar.
Mais tarde, já a trabalhar num banco, e depois de abandonar a minha cidade por não discordar de certas atitudes de meu pai, vim sentir no corpo, pois levei algumas "bordoadas" da policia de choque, em manifestações dos bancarios, de que fazia parte, na baixa de Lisboa, o que muitos antes haviam sentido e sentem por esse mundo fora.
Só quem anda metido nessas andanças, pode avaliar, o sentimento de revolta, e ao mesmo tempo de angustia, que nos invade, por sabermos que mesmo "levando", pouco ou nada vamos conseguir.
Não posso deixar de aqui lembrar o nosso coléga Daniel Cabrita, na altura nosso director do Sindicato, a quem a Polícia Política de então, atirou a mulher da janela, matando-a, com a finalidade de nos pressionar, estando ele, Daniel Cabrita, preso nas masmorras da Antonio Maria Cardoso, sede da Pide.
Vinha eu da minha cidade, habituado, e por ali pertencer à classe dos patrões, embora revoltados, a tomar atitudes de certo modo contestatárias, como por exemplo, a que fiz, colando os recibos de ordenado ao meu lado num armario, mostrando assim a minha revolta.
Um certo dia, um coléga já de certa idade, chamou-me e pediu-me para fazer o favor de os tirar, porque a minha atitude me estava a por em risco, e não só a mim mas a toda a secção.
Compreendi então, que até ali, e porque assim ele me deu subrecticiamente a perceber, não devia confiar nos que a meu lado, trabalhavam, iam almoçar e até comigo iam nos transportes para casa.
Alias, isso vim eu a verificar tempos mais tarde, e já depois do 25 de Abril, quando por força do trabalho que então desempenhava, como
Presidente da Comissão de Eleições na Amadora, onde residia, me foi presente um individuo como sendo dos que constavam nas listagens de elementos da Pide / Dgs.
Havia-se recenciado, o que lhe estava vedado por Lei.
Pedi que me trouxessem o referido sr. e espanto meu, era um homem que todos os dias nos acompanhava no comboio de regresso a casa, que connosco jogava as cartas, e de quem nunca haviamos desconfiado.
Fiquei estarrecido, até porque segundo aquilo que estava estipulado, teria que o mandar prender.
Amigos, hoje trinta anos depois, já nada me podem fazer pela "ilegalidade" que então cometi.
Que lucrava eu, em mandar para a prisão um pai de duas criança que até eram colegas de escola de meus filhos ?
Ia pagar-lhe na mesma moeda, sabendo eu pelo relatório que me foi entregue que aquele só trabalhava a nível de pequena informação, e sabendo que os seus chefes haviam já sido libertados, na sua maioria.
Lembrei-me na altura do que sentiriam os meus filhos se estivessem no lugar dos dele; assim substitui o nº que lhe havia sido dado ilegalmente, por uma outra pessoa das que se recenciavam naquela altura, fazendo deste modo desaparecer o seu nome dos cadernos eleitorais.
No fim do dia chamei todos os responsáveis dos Partidos que comigo trabalhavam, e pus o meu lugar á disposição dos mesmos, tomando a responsabilidade pelo acto praticado, tendo-me todos pedido que ficasse no lugar que ocupava.
Senti-me bem.
Mas houve muitas situações identicas, que poderia aqui relactar, mas que hoje acho por bem, deixar para outra altura.
Comecei por dizer que havia sido a a concretização de um sonho.
Mas que sonho seria esse ?
Claro o sonho foi o do Dia da Liberdade, o dia 25 de Abril de 1974, que por tanto ter sido esperado, foi celebrado como o Dia da Libertação.
Acredito que haja muitas pessoas que não compreendam o que isso representou para quem o viveu, e muito mais para quem o desejou e
com ele sonhou, pois a maioria dos que hoje já são pais de família, ou a ele não assistiu, ou muito menos o viveu.
Nas escolas pouco ou nada se fala desse dia histórico, talvez porque hoje, todos esses anos passados, estejamos num impasse que não querem, não desejam, ou até por inepcia, não quererão tirar-nos dele.
Disse aqui há poucos dias que vi nos rostos das pessoas com que me cruzei na rua tristeza e desanimo, pois hoje, numa das televisões portuguêsas, passou uma reportagem sobre esse assunto, e fique ao mesmo tempo triste e contente com o facto, satisfeito, por ter sido eu o primeiro a falar aqui no assunto, e triste por ver que a coisa está tão preta, que até a comunicação social, já se faz eco do mesmo.
De quaquer modo digo como disse há trinta e tal anos atras...
Viva o Meu Sonho, Viva o 25 de Abril de 1974, Viva a Democracia, Viva Portugal.
Antonio Freire
2006