A RUA DA MINHA VILA
Até ao final dos anos sessenta o meu horizonte se resumia a uma pequena rua, mas que para mim era um extenso universo. Lá eu permaneci por exatos vinte e oito anos. Eu me recordo de uma pequena rua estreita de terra batida e com esgoto a céu aberto, não tinha mais que trezentos metros de extensão, composta de poucas e humildes construções de alvenaria habitadas por gente simples e trabalhadora, em uma modorrenta e também perdida vila ainda em formação, distante do centro de São Paulo, cuja referência do local era o Bairro do Butantã. Uns chamavam o local de Jardim Centenário, outros de Vila Dinorah. Hoje aparece no mapa como Vila Tiradentes.
A rua de tão insignificante ainda não recebera sequer um nome, era identificada simplesmente por “Rua Cinco”. No final dela existia a biquinha onde por vezes a meninada ia tomar água. Dali pra frente terminava a rua e se estendia um enorme matagal composto por pequenos arbustos e uma vasta quantidade de pés de sapé, mais abaixo um pequeno córrego em boa parte coberto por taboas. Durante muito tempo a precariedade se fez presente, nem mesmo tínhamos energia elétrica, asfalto, esgoto e água encanada. Também não passava correio e muito menos a coleta de lixo. Cada lote tinha o seu próprio poço, cuja água era recolhida por um balde de maneira medieval, através de uma corda e de sarilhos confeccionados artesanalmente de madeiras.
Por ser um logradouro sem saída, no seu cotidiano por lá circulavam apenas os moradores e eventuais vendedores de peixe e de frutas, por vezes passava um sujeito com uma enorme lata na cabeça oferecendo carne e miúdos de porco. Passavam também o vendedor do quebra-queixo e o homem da machadinha que batia com a ferramenta na caixa de doces que atraia toda a petizada para se deliciar com a guloseima nas cores rosa e branca, também conhecida por puxa-puxa. O mais assíduo dos ambulantes era o seu Lourenço em cuja carroça tipo furgão entregava pães e leite diariamente, além do pão doce coberto por creme. As compras eram anotadas nas cadernetas individuais dos fregueses de então.
A nossa casa era dividida com meus avós e tios paternos, onde tínhamos viveiro de pássaros, parreiras de chuchu, um pé de romã e algumas árvores de sabugueiros. Até chegar ao matagal no final da rua, emendado com a nossa cerca, estendia-se um arremedo de campo de futebol onde disputávamos empolgantes porfias. Brincávamos à exaustão nos terrenos baldios, bolinhas de gude, pião, futebol de botão na calçada com as tampinhas de refrigerantes, empinávamos pipas, pulávamos cela nova enquanto as meninas brincavam de amarelinha no meio da rua, pois sabíamos que nenhum automóvel se atreveria a trefegar por aquela via. No período da seca era uma poeira só, enquanto que nas chuvas se transformava num grande lamaçal.
Já no inicio dos anos setenta, o logradouro sofre uma grande transformação com o seu prolongamento, surgiram dezenas de casas em toda a sua extensão, o progresso se fez presente, recebe então energia elétrica, água encanada, esgoto, pavimentação asfáltica, coleta de lixo, correios e o nome de Rua Emília Paulista.
O menino cresceu, amadureceu e outros caminhos seguiu, porém nenhum tem a beleza e a importância da rua onde aquela criança viveu. Guardadas as devidas proporções, o texto me transporta para “O Rio da Minha Aldeia” de Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa) In Guardador de Rebanhos (1911-1912).
Permita-me compartilhar o texto citado, aqui por mim adaptado:
A Rua da minha vila:
A Avenida Paulista é mais bela que a rua que passa na minha vila.
Mas a Paulista não é mais bela que a rua que passa pela minha vila.
Porque a Paulista não é a rua que passa pela minha vila
A Paulista tem muitos carros
E trafegam nela ainda
Para aqueles que veem em tudo o que lá não está
A memória dos veículos
A Paulista está no cume da metrópole.
E a Paulista atravessa muitas vilas
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é a rua da minha vila
E para onde ela vai
E donde ela vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior a rua da minha vila.
Pela Paulista vai-se o Mundo
Para além da Paulista há muitas vilas
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há (está) para além
Da rua da minha vila.