AS EPÍSTOLAS

Escrevo as mal traçadas linhas de hoje para falar de uma coisa atualmente em desuso: a carta, também chamada de missiva por alguns, e epístola, pelos apóstolos de Cristo.

Com a globalização e o uso disseminado do correio eletrônico, perdeu-se a carta convencional nos meandros da inutilidade, mais por culpa da pressa do ser humano em obter notícias em tempo real, do que propriamente pela falta de assunto. Milhões de cartas virtuais por minuto cruzam o ar em endereços codificados e decodificados eletronicamente, sem o calor do manuseio humano nas centrais de triagens.

As cartas eletrônicas, se ganham na velocidade, perdem na qualidade, pois, muitas vezes, escritas às pressas, as palavras são abreviadas, as mensagens são curtas, que mais lembram o telegrama de antigamente, aqueles em Código Morse, vistos em filmes de faroeste. Por falar nisso, alguém aí ainda se lembra como se escrevia um telegrama?

A carta, escrita à mão, tem uma inquestionável vantagem sobre a eletrônica: o cheiro. Por mais bacana que seja o chamado e-mail, por mais bem escrito que seja, não terá o cheiro nem o perfume usado naquele momento de devaneios da pessoa que escreve. Como se achar as impressões digitais em um e-mail? Como identificar as lindas caligrafias femininas, que levavam alguns homens a suspirar e a se apaixonar pela missivista? O maior inventor das fontes de editor de texto não conseguiu inventar uma fonte com a caligrafia feminina, pois, coisa que só Deus sabe o porquê, só a elas coube o feitiço e o encanto das letras (e de outras coisas também).

Cartas e telegramas faziam parte do currículo escolar e era obrigatório o seu estudo nas primeiras séries. Uma carta bem escrita, de imediato revelava o aluno para o mundo da Gramática, pois nela havia de tudo um pouco, desde as simples palavras e pronomes de tratamento, ao intricado jogo das orações subordinadas, reforma ortográfica e conjugações verbais. Havia cartas pessoais, cartas comerciais, cartas disso, cartas daquilo e as livrarias vendiam papel apropriado para carta, que não podia ser qualquer um nem escrita de vermelho ou verde, que se dizia ser “anti-didático”, para não se chamar diretamente o missivista de “grosso”. As editoras faturavam com a venda de livros com modelos de cartas comerciais, de amor, de amizade, modelos para pedir dinheiro a político e de se iniciar um amancebamento.

Havia os floreios, as letras requintadas, desenhadas, verdadeiras obras de arte. Alguém já imaginou Pero Vaz de Caminha enviando um e-mail para el-rey? D. Manuel, rei de Portugal de então, com o Tesouro Real atolado até o pescoço em dívidas, preocupado com a conta de telefone, com os vírus e spam, deletaria a mensagem e não teríamos testemunha documental do Descobrimento, nem o primeiro escrito de nossa Literatura.

Na adolescência, recebi uma carta da namorada de Neópolis, no estado de Sergipe, e que de vez em quando ia a Alagoinhas, cidade baiana que me adotou quando criança fugidia do atraso do sertão. A missiva começava assim: “Meu amor, você é o lenitivo do meu ser, o refrigério de minha alma.” Estanquei. Eu, com quinze, ela, com treze anos, aquilo não era termo usual em linguagem de adolescente. Mostrei a carta para o meu primo Paulo, que morava na mesma rua. Como eu, também ficou sem saber o que era lenitivo, muito menos refrigério. “Ser”, ainda dava para decifrar. Paulo sugeriu: “Isso deve ser coisa desses livros de cartas de amor. A minha irmã tem um. Vamos lá dar uma olhada”. Fomos. Realmente era um modelo da página 31, de um livro chamado “como escrever cartas de amor”, copiado em sua integralidade.

- Que sacanagem! Que faço agora, Paulo?

Ele vasculhou o livro lendo alguns trechos e depois deu a solução:

- Diga pra ela que a resposta está na página 105.

Depois disso ela nunca mais foi passar as férias em Alagoinhas.