PROCURANDO ADÉLIA PRADO
Divinópolis é a cidade que abriga o ser iluminado chamado Adélia Prado, uma escritora cujo brilho já começa nos títulos que escolhe. A fama não lhe apagou a modéstia e ela se manteve fiel às suas origens sem se deixar seduzir pelo esplendor dos holofotes. Como seria bom conhecê-la para uma breve tietagem!
Aproveitando que estava por perto resolvi dar uma esticada até lá para conferir; quem sabe não a encontraria numa padaria qualquer? A cidade tem ruas de tão grande extensão que, se alguém lhe disser "pegue a rua Rio de Janeiro e vá até o fim", pode estar certo de que essa pessoa deseja que você saia da cidade.
Era um sábado e então me deparei com uma praça cheia de gente. Pensei que fosse o homem da cobra fazendo uma apresentação, um vendedor de óleos sagrados ou coisa parecida, mas não era. Tinha um alto-falante ligado; uma mulher falava com ar professoral sobre um evento tipo semana-de-qualquer-coisa, patrocinado pela Secretaria Municipal de Cultura. Um mar de gente reunida e sorteio de prêmios.
Alguém fazia uma pergunta do tipo cultura de almanaque e se a pessoa acertasse a resposta, dizia o nome e recebia um prêmio. Dei chance a uma garotinha de ganhar dois deles soprando as respostas até que outras crianças começaram a me rodear, como se eu fosse uma espécie de salvador da pátria. Uma enérgica professora, que trabalhava na organização do evento, desconfiou de minha ajuda e resolveu conferir.
- Quem é o senhor?
- Um curioso apenas.
- Por favor, então permaneça curioso e não atrapalhe a brincadeira!
Interessei-me em saber algo mais e pedi-lhe para me explicar que evento era aquele, mas ela não tinha tempo. Era a encarregada de falar ao microfone, de conduzir a pauta do evento e outras coisas mais. Eu podia descer vinte e quatro degraus até o subsolo e obter todas as explicações com a professora fulana-de-tal, que não se encontrava. Depois disso topei com um sujeito com cara de personagem à procura de um autor que estava numa barraquinha expondo seus livros. Pareciam impressos na própria cidade, com qualidade gráfica sofrível. Eram versos melancólicos, retratando essas nossas vivências que, sempre que escrevemos, procuramos disfarçar, pensando que as pessoas não saberão disso, jamais. Olhando ora para ele, ora para seus livros, naquele ambiente onde havia uma manifestação de cultura em praça pública, perguntei pela Adélia Prado.
- Ela esteve aqui ontem, mas muito rapidamente. Fizeram-lhe uma pequena homenagem e ela foi embora. Hoje não esteve ainda e nem sei se virá. Ela é muito arredia a estes acontecimentos.
Agradeci, mas não comprei nada. Também não perguntei se os livros estavam à venda ou se eram para doação. Estava me sentindo tão bem naquela praça que eu não estava querendo ir embora - embora a bagagem já estivesse no carro e eu tivesse planos de pegar a estrada e dormir longe dali naquela noite. A mulher, que fazia o papel de mestre-de-cerimônias, pediu um tempo e disse que dali a pouco novos sorteios iam ser feitos. Que era para ninguém ir embora. E por causa do pedido, que não me fora dirigido, eu fiquei.
Acho que eu tinha uma secreta esperança de que a Adélia fosse aparecer por lá. E o que eu diria pra puxar conversa? Iria perguntar como ela sente a poesia? Sou tímido diante de celebridades e ela também ainda não deve ter se acostumado ao fato de ser uma personalidade, um vulto da literatura contemporânea brasileira. Quando ela fala publicamente em suas entrevistas, parece não ter a exata consciência de sua dimensão no contexto dos intelectuais. Ou então é arredia mesmo.
Ah, como eu gostaria – acho que todo mundo! – de ter o talento de Adélia para tirar a poesia do nada, como se fosse um Pablo Neruda de saias.
“Um corpo quer outro corpo / Uma alma quer outra alma e seu corpo / Este excesso de realidade me confunde / Jonathan falando: parece que estou num filme / Se eu lhe dissesse você é estúpido ele diria sou mesmo / Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear eu iria”. Quanta inveja branca!
Se eu batesse à porta de uma casa qualquer em Divinópolis e ela, em pessoa, me atendesse, eu não saberia o que falar, pediria desculpas e desapareceria como se fosse um gás. Pensei se eu teria coragem de lhe perguntar se ela, de fato, tirava a poesia de Deus. Será que, quanto lhe falta a inspiração, ela olha uma pedra e vê pedra mesmo? Será que, quando escreve disfarça até mesmo suas digitais no papel para dissimular sua vivência na poesia, no personagem da poesia? Será que não sobra nenhuma Adélia nos livros que escreve, que todo poeta é mesmo um fingidor? De repente todos os sorteios recomeçaram e a criançada se animou. Era uma festa para crianças e eu, observador andante, fiquei com medo de que a Adélia me visse e eu não tivesse, na ponta da língua, esta pergunta preparada:
- A literatura é uma coisa universal ou basta ser pessoal, desde que seja possível ao leitor transferir-se para o seu próprio texto?
E antes que me respondesse eu perguntei a alguém do lado:
- Como faço para sair da cidade?
- Basta pegar a Rio de Janeiro e ir nela até o fim.
(In: CONHECENDO MINAS – Poeira na estrada e becos apertados - Inédito)
Aproveitando que estava por perto resolvi dar uma esticada até lá para conferir; quem sabe não a encontraria numa padaria qualquer? A cidade tem ruas de tão grande extensão que, se alguém lhe disser "pegue a rua Rio de Janeiro e vá até o fim", pode estar certo de que essa pessoa deseja que você saia da cidade.
Era um sábado e então me deparei com uma praça cheia de gente. Pensei que fosse o homem da cobra fazendo uma apresentação, um vendedor de óleos sagrados ou coisa parecida, mas não era. Tinha um alto-falante ligado; uma mulher falava com ar professoral sobre um evento tipo semana-de-qualquer-coisa, patrocinado pela Secretaria Municipal de Cultura. Um mar de gente reunida e sorteio de prêmios.
Alguém fazia uma pergunta do tipo cultura de almanaque e se a pessoa acertasse a resposta, dizia o nome e recebia um prêmio. Dei chance a uma garotinha de ganhar dois deles soprando as respostas até que outras crianças começaram a me rodear, como se eu fosse uma espécie de salvador da pátria. Uma enérgica professora, que trabalhava na organização do evento, desconfiou de minha ajuda e resolveu conferir.
- Quem é o senhor?
- Um curioso apenas.
- Por favor, então permaneça curioso e não atrapalhe a brincadeira!
Interessei-me em saber algo mais e pedi-lhe para me explicar que evento era aquele, mas ela não tinha tempo. Era a encarregada de falar ao microfone, de conduzir a pauta do evento e outras coisas mais. Eu podia descer vinte e quatro degraus até o subsolo e obter todas as explicações com a professora fulana-de-tal, que não se encontrava. Depois disso topei com um sujeito com cara de personagem à procura de um autor que estava numa barraquinha expondo seus livros. Pareciam impressos na própria cidade, com qualidade gráfica sofrível. Eram versos melancólicos, retratando essas nossas vivências que, sempre que escrevemos, procuramos disfarçar, pensando que as pessoas não saberão disso, jamais. Olhando ora para ele, ora para seus livros, naquele ambiente onde havia uma manifestação de cultura em praça pública, perguntei pela Adélia Prado.
- Ela esteve aqui ontem, mas muito rapidamente. Fizeram-lhe uma pequena homenagem e ela foi embora. Hoje não esteve ainda e nem sei se virá. Ela é muito arredia a estes acontecimentos.
Agradeci, mas não comprei nada. Também não perguntei se os livros estavam à venda ou se eram para doação. Estava me sentindo tão bem naquela praça que eu não estava querendo ir embora - embora a bagagem já estivesse no carro e eu tivesse planos de pegar a estrada e dormir longe dali naquela noite. A mulher, que fazia o papel de mestre-de-cerimônias, pediu um tempo e disse que dali a pouco novos sorteios iam ser feitos. Que era para ninguém ir embora. E por causa do pedido, que não me fora dirigido, eu fiquei.
Acho que eu tinha uma secreta esperança de que a Adélia fosse aparecer por lá. E o que eu diria pra puxar conversa? Iria perguntar como ela sente a poesia? Sou tímido diante de celebridades e ela também ainda não deve ter se acostumado ao fato de ser uma personalidade, um vulto da literatura contemporânea brasileira. Quando ela fala publicamente em suas entrevistas, parece não ter a exata consciência de sua dimensão no contexto dos intelectuais. Ou então é arredia mesmo.
Ah, como eu gostaria – acho que todo mundo! – de ter o talento de Adélia para tirar a poesia do nada, como se fosse um Pablo Neruda de saias.
“Um corpo quer outro corpo / Uma alma quer outra alma e seu corpo / Este excesso de realidade me confunde / Jonathan falando: parece que estou num filme / Se eu lhe dissesse você é estúpido ele diria sou mesmo / Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear eu iria”. Quanta inveja branca!
Se eu batesse à porta de uma casa qualquer em Divinópolis e ela, em pessoa, me atendesse, eu não saberia o que falar, pediria desculpas e desapareceria como se fosse um gás. Pensei se eu teria coragem de lhe perguntar se ela, de fato, tirava a poesia de Deus. Será que, quanto lhe falta a inspiração, ela olha uma pedra e vê pedra mesmo? Será que, quando escreve disfarça até mesmo suas digitais no papel para dissimular sua vivência na poesia, no personagem da poesia? Será que não sobra nenhuma Adélia nos livros que escreve, que todo poeta é mesmo um fingidor? De repente todos os sorteios recomeçaram e a criançada se animou. Era uma festa para crianças e eu, observador andante, fiquei com medo de que a Adélia me visse e eu não tivesse, na ponta da língua, esta pergunta preparada:
- A literatura é uma coisa universal ou basta ser pessoal, desde que seja possível ao leitor transferir-se para o seu próprio texto?
E antes que me respondesse eu perguntei a alguém do lado:
- Como faço para sair da cidade?
- Basta pegar a Rio de Janeiro e ir nela até o fim.
(In: CONHECENDO MINAS – Poeira na estrada e becos apertados - Inédito)