ESCARAS DESCOBERTAS

No banheiro, diante do espelho, ela envolve os cabelos com uma presilha e forma um coque meio frouxo, no topo da cabeça. Enquanto escova os dentes, observa o rosto. Ainda não tem linhas de expressão acentuadas, mas falta aquele viço do rosto jovem e bonito que outrora inspirou poesias e arrancou suspiros. Faz, propositalmente uma careta, testando assim a elasticidade da pele. Observa que os cabelos ainda estão negros, resistentes ao passar dos anos, mas, assim como a pele, não têm mais o mesmo agraço. Imagina um banho de brilho... talvez um corte moderno..., mas, o Paulo a conhecera linda, de cabelos longos; dizia gostar de suas madeixas tal como estavam.

Enquanto pensava, uma voz grave e autoritária reboou da cozinha:

- Não sai café nessa casa hoje não?!

O solavanco oral a fez acordar para a vida. Foi cuidar dos afazeres da cozinha. Minutos depois, a mesa estava posta para cinco, café no bule, queijo coalho, as torradas que o Paulo não dispensava, a geleia de amora que ela mesmo fizera no dia anterior, o bolo de milho verde que a Mariana tanto queria, o leite quente que o Paulinho sempre tomava e o cappuccino que o Miguel tanto apreciava.

Foi até o quarto para trazer o caçula à mesa. O rapaz e a menina moça já estavam de pé. Todos se fartaram e, arrumados, foram para o carro. O Paulo já estava pegando a chave do veículo quando ela avisou que a despensa estava meio desfalcada e que era dia de ir às compras. Ele nada disse. Tirou três notas graúdas do bolso e, com cara de desagrado, jogou-as sobre o aparador. Saiu sem dizer tchau ou deixar um beijo na testa. Ela ficou, focou em cada desafio e procurou cumprir da melhor forma cada tarefa doméstica. Após constatar que a casa estava impecavelmente em ordem, trocou o vestido surrado por legging e camiseta. Nos pés, sandálias rasteiras, bem confortáveis.

Foi à feira e ao supermercado, pechinchou num canto e noutro; economizou como pôde. Orgulhou-se de sua habilidade. Na rua, viu um cartaz anunciando preços promocionais nos serviços, na inauguração de um salão de beleza. Com o dinheiro que economizou poderia dar o banho de brilho que os cabelos necessitavam. Por um segundo, pensou em agendar um horário, mas lembrou-se do convite que a Mariana recebera para o aniversário de quinze anos da amiga. A menina decerto iria fazer as unhas e escovar os cabelos. E o Paulo, zangado, já avisara que não iria mais gastar um centavo, pois achara exorbitante o valor do aluguel do vestido de festa.

Desistiu. Desviou os olhos do anúncio e rumou de volta para casa, carregando as sacolas razoavelmente pesadas. Antes de atravessar a rua, sentiu o suave vento matinal trazer-lhe às narinas um perfume fresco e marcante. O corpo perfumado cruzou seu caminho esnobando uma camisete branca com um jeans caro à la Paris Hilton, que moldava-se perfeitamente em seu corpo alvo e bem delineado. Nos pés, o charme do scarpin vermelho, salto Luiz XV. Na boca, batom provocante, vermelhíssimo! Na cabeça, as madeixas com luzes renovadas competiam com o sol pela atenção. Deixara o salão naquele instante. Não demonstrava ser tão jovem como a estrela do cinema. Tinha uma beleza produzida, renovada.

Pela primeira vez, em tantos anos, sentiu-se diminuída. Durante todo o dia, pensou na mulher, no perfume, na roupa elegante, no salto, na sensualidade do andar; nos cabelos iluminados. À noite, durante a novela do horário nobre, espectou o protagonista e enamorou-se secretamente dele. Viu-se vestida tal qual a dama que vira na rua, mas com as madeixas negras e com banho de brilho. Interrompeu o devaneio para guiar os filhos às suas camas e foi para a sua. Sonhou acordada novamente. Ali, na cama, sozinha, imaginou-se desejada e possuída pelo moço lindo da novela. Despertou para a vida quando o Paulo chegou do “serão” e foi logo dirigindo-se ao banheiro, ordenando que ela lhe levasse os chinelos, a toalha e uma cueca; fazendo com que ela sentisse que ele era superior a ela. Suas roupas ficaram jogadas no chão do quarto, a fim de que ela as recolhesse. E assim a Amélia fez: coletou-as. Nem precisou aproximá-las do nariz para perceber, na camisa preta, um fio de cabelo longo e iluminado e um cheiro de perfume fresco e marcante.