SAPATO VELHO
É estranho remexer em pertences de morto. O que existe ali não são recordações, mas sentimento. No relicário de meu pai, as únicas provas de que ele andou e respirou entre nós. Com o passar do tempo, a memória vai esmaecendo... como aquele retrato dele menino, sentado com pose de artista. E por ali, poderia reconstruir a sua trajetória de homem honrado. “Dê-me os primeiros anos de uma criança que direi o adulto que ela se tornará”. De fato. A infância de meu pai, foi arraigada no urgente-servir, pelo exemplo de meu avô Misael de Sousa: um funcionário público que arrastou o mundo inteiro pelas calçadas da “rua Grande”, nas intermináveis idas e vindas... da Miguel Sátiro ao Paço Municipal, onde trabalhou a vida toda. E os mais antigos diziam: - Seu Misael foi um homem de bem. Às vezes, penso que isso pode ter sido um impedimento para que meu pai se tornasse o que bem quisesse; mas, apenas ele poderia enfrentar os seus fantasmas. Mesmo assim, acho que meu pai mais deu do que recebeu. A vida foi moldando ele como que castigando. Não falo de frustração, mas de embrutecimento. E paro por aqui, pois a mim não cabe nenhum jugo. Nada mais será dito. Tudo está consumado. De resto, fiquei com um par de sapatos de numeração 41, que guardo até hoje. Gostaria de enterrá-lo na cova onde ele repousa confinado, sem cerimônias. Mas, não sei... - Uma vida é muito pouco. E, sem afeto, somos apenas acumuladores de coisas. Pior: tornamo-nos curadores de nossos próprios anos. Acompanho a desconstrução de nós mesmos pelos obituários noticiosos. E lá se vão os amigos de meu pai para serem enterrados como ele; reservas morais de um tempo perdido, cuja vaidade era somente existir. A minha maior herança, não foram aqueles sapatos marrons, gastos de tanto usar... – Meu pai me deixou, como prêmio, a humildade – A mais nobre de todas as virtudes. E por ser “a gratidão, o único tesouro dos humildes”, procuro exercitar esse talento, agradecendo, até o fim de meus tempos, por ter sido seu único filho nesta terra miserável.