UMA DIMENSÃO NÃO DIMENSIONÁVEL

Pelo seu potencial e imprevisibilidade dos efeitos de seu exercício, a fé é aquela dimensão humana que deveria permanecer estritamente no campo pessoal, sem nenhum estímulo ou embaraço por parte do Estado.

Claudio Chaves

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O atual (e colossal) escândalo das denúncias de crimes sexuais contra o famoso médium brasileiro conhecido internacionalmente como João de Deus desperta a atenção do mundo inteiro, e por vários motivos; o sepulcral silêncio das (até agora) supostas vítimas é um desses.

Não resta dúvida de que essa é uma das (senão a) mais intrigantes perguntas: por que as centenas de mulheres que acusam o médium de vários crimes, incluindo estupro e ameaças de morte, somente agora quebraram o silêncio, havendo relatos de casos que retrocedem há mais de 20 anos?

Certamente o que não faltará serão explicações pra isso. No entanto, o convencimento (ou não) de quem as ouvirá é assunto para as partes diretamente envolvidas, muito embora desperte o interesse do mundo inteiro.

O mérito deste introito, porém, é destacar o fenômeno em torno do qual todos os acontecimentos em pauta orbitam e o seu inigualável poder de persuasão, manipulação e controle. Esse fenômeno se chama fé, e é a dimensão mais não dimensionável do ser humano e, exatamente por isso, uma das mais fascinantes, atraentes e igualmente temerárias.

Os relatos das denunciantes são contundentes (com riqueza de detalhes) e chocantes; porém não mais impressionantes do que os efeitos anestesiantes da fé no médium que, apesar das fortíssimas evidências de crimes pavorosos e repudiáveis, segue dividindo opiniões em todo o mundo, em especial na pequena Abadiânia, cidade do interior goiano onde João de Deus estabeleceu sua “tenda dos milagres”, e para onde afluíam crentes do Brasil inteiro e de várias outras partes do mundo em busca de curas para várias enfermidades do corpo e, principalmente, da alma.

Quando indagadas sobre o silêncio, as respostas das mulheres variam, indo desde o profundo constrangimento e autoculpabilidade, passando pelo medo das ameaças, até a desmoralização perante às autoridades judiciais e à sociedade geral, tamanha a reputação do homem que se notabilizou como piedoso e autêntico representante de Deus na Terra, uma pessoa inteiramente devotada a ações caritativas e à promoção do bem-estar do próximo.

Apesar do escândalo – que, vale ressaltar, apenas se ampliou, mas não começou com as denúncias atuais –, muitos dos seguidores do médium, incluindo várias mulheres, embora admitindo a possibilidade de culpa do mesmo, afirmam que nada muda em relação ao que ele fez de bom nem sobre a autenticidade de sua religiosidade.

De fato, o julgamento quanto a isso é competência das autoridades.

Ademais, se comprovada (ou, de repente, confessada) a culpabilidade do acusado, ele não estará sozinho como grande referência de santidade a cometer crimes dessa natureza e continuar venerado por seus seguidores e/ou adeptos de sua crença. E é exatamente nesse particular onde pousam as minhas reservas quanto ao ponto em que a fé pode nos levar.

As milhares de pessoas que afirmam ter alcançado a cura de graves enfermidades a partir da intercessão do, agora, acusado João de Deus não a teriam conseguido senão por meio da fé.

Do mesmo modo, porém, os crimes a ele atribuídos dificilmente teriam atingido tamanha proporção e sido mantidos de forma tão sigilosa por tanto tempo não fossem, de alguma forma, mediados por esse mesmo demolidor fenômeno.

Eis mais um ruidoso e perturbador motivo pelo qual o exercício de tal dimensão deve permanecer estritamente na esfera pessoal, ou, como sensatamente prescreve o Artigo 19 de nossa Constituição Federal, sem nenhum patrocínio ou embaraço do Estado.