Fala aí, Educação!

A escola estava no maior agito. Todas as salas divididas em grupos. A indisciplina era tanta, que se tornava impossível acreditar que alguém, no meio dos seiscentos e noventa alunos daquele período, aprenderia alguma coisa.

Boa parte dos docentes sabiam da realidade da escola, enquanto outra parte trabalhava no jeitinho do faz de conta. A equipe gestora, por sua vez, era mais enfática: acreditava que só pelo professor não encaminhar o aluno à direção, a casa estaria em ordem e a educação às mil maravilhas. Alguns docentes estavam de fato tão cansados daquele faz de conta, que só pelos alunos pedirem para irem ao banheiro, era questão de alívio.

Boatos se estendiam pela unidade escolar, onde uma tal de Santa Genoveva era a santa padroeira dois professores. Alguns docentes alegavam, ainda, que segundo alunos, havia também, nesta unidade escolar, uma padroeira dos alunos indisciplinados, Santa Lucrécia.

Em meio a tantos atos ecumênicos, alguns professores quebravam a regra de Dona Meltrides, diretora da instituição, e encaminhavam em duplas os possíveis causadores da indisciplina na sala.

Quando Dona Metrildes se ausentava, Salilanca, a vice-diretora, apoiava os professores. Os pentelhos, então, ficavam ausentes da sala, registrando no caderno todo o conteúdo do dia perdido e após um sermão assumiam o compromisso de participar das próximas aulas. Ai deles se descumprissem o acordo. Os pais seriam chamados e passariam a acompanhar os cadernos das crianças constantemente, retornando sempre que possível à escola para fiscalizar o desempenho pedagógico do filho.

Dois ou três professores serviam de testemunhas no acordo firmado entre Salilanca e o pai. Salilanca apresentava ao pai do aluno o mapa anual, que continha as reuniões bimestrais dos pais, alertando sobre a lei federal. O pai presente à reunião tem o direito de uma declaração confirmando o horário permanecido na unidade escolar e a notificação ao serviço, necessitando acatá-la.

Durante algum tempo o bendito acordo era válido. Com Salilanca em cena tudo era levado ao pé da letra, mas quando Dona Metrildes era quem estava à frente da direção, as coisas mudavam. Dona Metrildes era concursada, mas o hipnotismo de que o que valia era a documentação em dias ao órgão que fiscalizava a sua instituição, por descuido, deixava de lado tudo àquilo que um dia aprendeu. Se preocupava tanto com a documentação que questão de a escola pegar fogo em razão da indisciplina, não era sua responsabilidade. Para ela, a responsabilidade era do professor que não sabia segurar a sala de aula. Salilanca, de um modo gentil, tentava alertá-la.

Em questão de papel, era uma escola exemplar, no tocante à rede de ensino de São José dos Campos. Se papel realmente fosse qualidade de ensino, sua escola ficaria em primeiro lugar., mas a avaliação era feita a partir dos conteúdos. Nos anos em que em que Salilanca mais substituía Metrildes, o rendimento da escola até que melhorava, mas nos anos em que Dona Metrildes era quem mais marcava presença, o rendimento descia ao fundo do poço.

Salilanca acreditava que de alguma forma tinha sim que punir os alunos indisciplinados, mas que deveria valorizar os alunos disciplinados. Sempre quando conseguia arrancar de Dona Metrildes o possível espaço de poder, inventava dinâmica ou recreações na escola. coreografia ou peça teatral sobre a Páscoa, festa do dia das mães, festa junina, festa das nações, miss primavera, semana das crianças, um dia de confraternização entre os professores e alunos, festa do halloween e para o fechamento do ano letivo – todas as salas teriam que fazer uma apresentação, representando-as. Ao último, a sala mais criativa, ganhava um passeio ao cinema. Sem falar ao fechamento de todo bimestre: as duas salas com maior rendimento escolar ganhavam um passeio.

Com Salilanca era tudo diferente. Os HTPCs (Horários de Trabalho Pedagógico Coletivo) continham programações diferentes. Tinha dia só para preparar aula. Outros, para os docentes fazerem trocas de experiências que deram certo em suas turmas. Noutros, professores eram escalados e em forma de workshop ou palestra, orientavam aos demais com dicas de aulas interativas a serem usadas em sala. Cada fechamento de bimestre, se o rendimento escolar aumentasse: o bendito HTPC era trocado, festejando o rendimento numa pizzaria ou churrascaria.

Os professores tinham a oportunidade de se conscientizarem a partir dos projetos que eram trabalhados com os pais dos alunos mais terríveis da escola. Tratavam de assuntos como drogas, bullying, inclusão social, indisciplinas escolares ou comportamentos onde os próprios pais não soubessem lidar. Professores levavam até a escola, psicólogos, psicopedagogos e conselheiros tutelares a fim de enriquecerem o vínculo com os pais.

Salilanca sempre a alertava a diretora sobre a importância de ter uma escola acolhedora e amiga de todos. A diretora até reconhecia o carisma e o trabalho da vice, mas não gostava de ser comparada. Como milhares de professores,

Dona Metrildes adoeceu. Salilanca a substituiu, colocando em prática tudo aquilo que já fazia. Ausente do trabalho, Dona Metrildes percebeu que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) trabalha de mãos juntas com o direito e o dever, responsabilizando pelos atos seus feitores. Percebeu também que o jeito do faz de conta caiu em desuso. Havia uma professora do terceiro ano do ensino fundamental que em memória de Dona Metrildes usava o faz de conta nas narrações de Petter Pan.

Quem sente saudade de Dona Metrildes são os alunos indisciplinados, pois vacilou? Os pais são chamados. Alunos na sala de aula sem nada a fazer? Isso não existe, a escola foi feita para estudar. Professor faltou? O bendito momento é usado para horário de pesquisa ou leitura, valendo ponto ou nota para as possíveis matérias do professor ausente. Alunos mataram aula? Os pais são notificados, e no dia seguinte, são obrigados a comparecerem com o caderno em dia.

Cada sala agora tem o seu grupo de WhatsApp, onde todos os conteúdos são compartilhados para aqueles que faltarem consigam organizar os seus cadernos. Os eventos e acontecimentos são também compartilhados no Facebook e encaminhados por correntes virtuais aos pais interessados. Os pais são convidados e incentivados a acompanharem todo o processo de aprendizado dos filhos, horário de aula, calendário das provas e dos trabalhos.

escritor Rogério Rodrigues
Enviado por escritor Rogério Rodrigues em 14/12/2018
Reeditado em 08/05/2024
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