A povoação de Bento Rodrigues morreu em 5 de novembro de 2015 com a passagem do fluxo de rejeitos por uma brecha na ombreira esquerda da barragem do Fundão. Morreu como nasceu, condenada ao desprestígio.
Bento Rodrigues, taubateano, foi cabo de uma das bandeiras que invadiram a região do Ribeirão do Carmo – atual Mariana – naqueles tempos, e grande quantidade de gente foi atraída ao local por volta de 1697. Chamado de “famoso arraial” e de “centro de mineração surgido na época do bandeirismo” no Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais, foi primeiro exaltado, depois desqualificado antes de se tornar invisível e, finalmente, vitimizado após suas exéquias em novembro de 2015.
Antonil escreveu no início do século XVIII, sem pretensão de ajuntar o acanhado lugar às fantásticas epopéias de Vila Rica e Vila do Carmo, ressaltando que naquele lugar se tirava 5 arrobas de ouro em pouco mais de 5 braças de terra: “E todas estas [localidades] tomaram o nome dos seus descobridores, que todos foram paulistas.”
Já estava claro naquele tempo que Bento Rodrigues estava fadado a ter um futuro sem promessas: o ouro, mais grosso e palpável, não tinha a mesma perfeição do ouro preto do Tripuí e do ouro reluzente do ribeirão do Carmo. Quando muito chegava a vinte quilates. Foi então que, no rastro das primeiras riquezas se construiu o único testemunho sobrevivente de seu sucesso passageiro: a capela de São Bento, datada de 1718. Precocemente invisível, foi eclipsada pelo fulgor de Vila Rica e Mariana que, durante todo o século XVIII ofuscaram tudo ao redor.
O tempo, a miséria e o descaso se encarregaram de destruir as construções primitivas, exceto a capela de duradoura sobrevivência. Tudo ali foi substituído pelo novo, mas não moderno, e pelo simples, mas não admirável, menos a capela primitiva. Quanto a Bento Rodrigues sua única culpa foi ter sido construída na rota de inundação de uma barragem de rejeito construída no século XXI por causa do ouro de boa qualidade descoberto no início do século XVIII. Agora apagada do mapa, a povoação já se extinguira ao longo do tempo.
Bento Rodrigues seria apenas um ponto de passagem no mapa se à beira do Gualaxo do Norte não existisse ouro. Não mereceu a mesma atenção dedicada às nascentes vilas das margens do Tripuí e ribeirão do Carmo pelos aventureiros bandeirantes, emboabas, emigrantes, tropeiros, mascates, vices-reis, naturalistas estrangeiros e príncipes imperiais. Pequena e fora do eixo principal do cintilante desenvolvimento das vilas vizinhas, Bento Rodrigues escapou da rota de contrabando, dos escândalos da inquisição e das conspirações libertárias.
Pobre, ficou também à margem da ostentação e da imortal criação do patrimônio barroco. Na sua fase de exaltação o lugar tinha quase status de concorrente de Vila Rica, Ribeirão do Carmo, Camargos e Inficionado. Finalmente, na primeira década do século XIX, outro tipo de gente, estimulada pela curiosidade e outros interesses, passaria a circular por ali, já então um simples ponto de passagem na rota dos diamantes.
O primeiro deles, o inglês John Mawe, sem precisar a data, descreveu sua saída de Mariana em direção a Camargo: “Uma légua além (de Camargos) está Bento Rodrigo, lugar pobre, de pouca importância...”. Eschwege anotou com desinteresse o nome da povoação em seu itinerário quando se preparava para percorrer o Caminho dos Diamantes em 1811. Spix & Martius e Saint-Hilaire descreveram brevemente o lugar, destacando sua pobreza. O detalhista Pohl observou que ali tinha umas sessenta casas, duas estalagens bastante medíocres e duas pequenas igrejas. “Um miserável agrupamento de choupanas” foi o que mais despertou a curiosidade de Charles Bunbury em sua viagem de 1833 a 1835 pelo Brasil. A mesma insignificância anotada por Gardner em 1840.
E assim prosseguem as descrições, invariavelmente colocando Bento Rodrigues como um lugar miserável, feio, decadente, embora sempre relembrando sua riqueza em ouro no início do século XVIII.  Até que, encerrando o ciclo, o último deles, Richard Burton, passasse por ali na segunda metade dos 1860. Muitos desses viajantes estrangeiros do século XIX – Langsdorff, Sellow, Spix & Martius, Eschwege, Schüch, Pohl, d’Orbigny, Eugen Hussack, Charles Hartt, Derby, John Casper Brannee, etc. – estavam em busca do ouro novo, também chamado de ferro. Seria a ressurreição de Bento Rodrigues? Não, hoje se sabe que foi sua morte.
O tempo passou e Bento Rodrigues criou identidade própria: complexa, tímida e quase indecifrável, paralisada; não entrou em decadência porque não se desenvolveu. Precisou chegar ao século XX para entrar no ciclo do ferro e ser invadida pela poeira do minério, pelo enfeiamento da paisagem da majestosa Serra do Caraça que lhe era tão cara.
O distrito estava condenado a uma espécie de fatalismo congênito que lhe impôs o raquitismo e a dependência física dos recursos naturais, mas sobreviveria com dignidade convivendo com o pouco e o possível. Com a honra de estar na Estrada Real onde a porção barroca de Minas colonial edificou sua esplendorosa riqueza do ouro e dos diamantes. Arrasado, agora se confunde com a face oculta da Samarco.
Bento Rodrigues não mais existe. Pior ainda: será varrido da memória e da História como se nunca tivesse existido. A ponte e a estrada, ambas destruídas. Era o caminho por onde passaram bandeirantes, povoadores, naturalistas estrangeiros, turistas e aventureiros. Na tragédia de Bento Rodrigues estão reunidos os mortos, os sobreviventes, o rio Doce, o povoado; a sua história e a sua cultura.
A Igreja de São Bento do lado esquerdo, igualmente pobre, reformada e descaracterizada, à qual só os mais devotos e os amantes da História prestavam atenção. Coisas preciosas surgiram dentre a lama e os escombros depois de um mês de resgate após a tragédia: marco do antigo arraial, quatro peças pertencentes à antiga Igreja de Santo Bento, almofadas da porta principal, fragmentos de um banco da sacristia, anjo de madeira de um altar, pia batismal e o mais que um dia vier a ser achado.
Agora, em vez da antiga ponte, o penhasco. Em vez de um roteiro turístico, um pesadelo. Em vez de um rio de águas claras, que corriam sob forma de cachoeira entre as pedras, o barro seco.
O melhor que a Samarco poderia fazer seria escavar toda a lama e deixar à mostra as ruínas do que ela foi. Exibir o que restou.
 
Cornélio Zampier Teixeira
Enviado por Cornélio Zampier Teixeira em 12/12/2018
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