NÃO FOI POR CAUSA DA CRISE
 
         Tarde de sábado chuvosa na barbearia. Um homem inquieto chega com seu filho. Pai e filho juntos, coisa rara em tempos líquidos. Mas os barbeiros também pai e filho amargavam o dia de pouca freguesia . Certa vez o pai falou da intenção de fazer o filho seguir o ofício. Certa vez o filho falou das dificuldades de seguir o oficio do pai. Mas os dois estavam lá ganhando seus trocados na tarde de um sábado choroso.
         O garoto que chegou, quase de mão dada ao pai, gostava de cortar seu cabelo com o filho do barbeiro. O rapaz que já era pai também. Nas aventuras da vida, se empaternou.
         Conversar diversas para fazer o tempo passar. O sábado seguia chorando o fim do ano cada dia mais próximo. Sobre política quase nada. Vivemos um tempo de não-política. Tempos estranhos. como diria um supremo de toga. Eu percebo que o tempo tem ficado mesmo estranho. E a gente que trabalha, trabalha, e trabalha, ficando cada vez mais sem tempo de escrever uma pequena crônica.
         Outro cliente espera. Chega a vez do adolescente que senta com ressalva na cadeira. O menino que ser homem. Quer imitar o pai, mas acha difícil certas coisas próprias de homem. A crise brava, o cabelo precisando cortar. Pega-se a última cédula de cem reais na gaveta. A esposa certamente lhe ofereceu dinheiro. Mas ele prefere gastar da sua. Amanhã alguns trocados deverão ser sacrificados no Dia do Senhor. Domingo é sempre dia de sacrificar algum dinheiro para uma ceia mais gorda. Frango assado, maionese, macarronada, farofa, algo assim. E tem também as bebidas. Mas o homem que levou o filho para cortar cabelo parece não ter o hábito de beber. Ele é meio aéreo, parece aqueles homens que gostam de refletir. O menino também aéreo, genética? Talvez sim, talvez não. Talvez seja desses meninos que passam horas em frente ao computador.
         Começa o corte do filho com o filho do barbeiro. E lá se vai as conversas, a distração, a chuvinha insistente, a gripe que o bendito pai pegou por sair na chuva com o filho.
         Chega um sujeito estranho na porta do salão, ou barbearia, como queiram. Chama o barbeiro pai lá fora. Ele não vai. Então o homem, cambaleando, cabelos longos, pedindo para cortar seus cabelos que estavam lhe incomodando. O cabeleiro, barbeiro, o outro nome que se pode dar a esse ofício, recusou. “não, não posso cortar”. “Fiado, sô”. “Fiado somente até ontem.” “Você me conhece”. Silêncio.
         “Você me conhece, sô. “ “não aguento mais esses cabelos na minha orelha. Corta, sô. Você me conhece.”
         O homem magro na porta insistiu mais por alguns minutos. Depois saiu na chuva que ficara um pouco mais fina.
         O sujeito que tinha levado o filho para cortar cabelo estava com apenas oitenta reais no bolso. Antes do magricelo chegar aporta do estabelecimento, ele tinha atravessado a rua e entrado num armarinho pequeno e comprado algo para algum amigo oculto, coisas de fim de ano. Gastou em torno de vinte reais e pegou uma gripe.
         “Deve ser a crise que fez o homem cortar o fiado.” Outrora já presenciara diversas vezes o freguês pendurando a prestação de serviço. Mas não. Não era a crise financeira que afastara as  pessoas, inclusive das barbearias.
         O sujeito cambaleante já havia feito esse pedido antes. Já havia recebido a caridade do homem da barbearia que fora evangélico. Um dia disse não e foi questionado. Ele disse para um desses sujeitos que ficam pedindo dinheiro emprestado que não tinha dinheiro para emprestar. E foi questionado se era evangélico, por que negava dinheiro. Ele contou disse que ter dinheiro e ter dinheiro para emprestar são coisas diferentes.
         Certamente o sujeito já tinha gasto o que ganhara durante a semana com a marvada. E bêbado, não se lembraria de ter contraído a dívida. Então não foi pela crise, mas pela racionalidade no tocante à questão da caridade. E a chuva seguiu caindo como caridade de Deus em tempos de aquecimento global.
        
          01/12/2018
Cláudio Antonio Mendes
Enviado por Cláudio Antonio Mendes em 06/12/2018
Código do texto: T6520713
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