Chamariz dezembrino
Chamariz dezembrino
Tantos artigos nesse mundão. Estou esperando Celeste defronte ao mercado, espremido numa mesinha, estabelecimento de lanches do oriente médio, creio, recém inaugurado. Durante décadas essa casa ostentava a chancela de estúdio de design, que deve ter funcionado 2 meses no máximo, e depois mergulhou num misterioso abandono. Na época podia-se ver no interior um desenho do Audubon.
Em mesa próxima um suposto casal trava o seguinte embate:
Ela, grisalha, autoritária, com lenço turquesa no pescoço, diz: Michel, não é amor. Ele, vacilante, rechonchudo, envelhecido, retruca: é amor.
Coisas velhas parecem novas em folha, Fred Astaire, por exemplo, outro dia revi "Núpcias Reais”, tem aquela cena dele com o cabideiro ou coisa que o valha, mais a cena em que ele dança no teto e nas paredes. Tudo sem cortes, ainda por cima. Fala sério. Passaram 60 anos e dançarino algum chega aos pés dessa figura. Outra antiguidade me chamou atenção, The Fabulous Baker Boys, Michelle Pfeiffer cantando "More Than You Know", vixi, dá até arrepio, e "Ten Cents a Dance”, só a letra dessa música é uma aulinha de sociologia. Há um finesse no conjunto difícil de descrever, não tem em qualquer esquina. Se a gente não vigia, acaba acatando a disfunção como forma de arte.
Celeste avisa via SMS que vai demorar. Bidu.
Pedi um suco que não chega.
À medida que a situação avança, o casal ao lado se configura em terapeuta e paciente, e ou amigo buscando aconselhamento. Permanece a cantilena: Ela, definitivamente impositiva, exclama: não é amor. Ele, lamuriento, retruca: é amor.
A gravura que no passado pernoitou nessas paredes era, salvo engano, de um flamingo alaranjado e pescoçudo. John James Audubon, detentor de traço inconfundível, desses intrépidos que tratam a vida como o escultor manipula o mármore, nasceu no final do século XVIII em Santo Domingo, teve sua cota de distúrbios e um belo dia pegou um estojo de colorir e se mandou pro sertão norte americano. Resultado - The Birds of America, livro cuja valia hoje gira em torno de 13 milhões de dólares, dinheiro de pinga perto do valor histórico da obra.
Ai, ai, as trevas não podem ver a Luz, enquanto aqueles da Luz podem detectar os que se identificam com as trevas. Isso, com certeza, deve ser de alguma ajuda, no mínimo treina novamente nosso cérebro para algoritmos positivos.
Contemplando a paisagem de transeuntes, garçons, clientes, mercado apinhado na frente, céu de um estranho dezembro pairando, flanei no trabalho da senhora Ludovica Rambelli, que idealizou um espetáculo teatral chamado As pinturas de Caravaggio em carne e osso. Só vendo. Grande sacada. Ludovica subiu ano passado, aos 54 anos, deixou um legado ainda sem página na Wikipedia. Essas pessoas passam pelo mundão feito um cometa remoto de extensa cauda, que nem o Burt Munro, velhão maluco raiz que em 1962 saiu da Nova Zelândia com uma mão na frente e outra atrás, ou como diria a minha avó, sem uma gata pelo rabo, e foi pros States bater o recorde - intacto até o momento - das 1000 cm3 de cilindrada - 320 km/h, pasme, numa motocicleta mequetrefe de 1920 chamada Indian Scout, nem capacete apropriado o cara tinha.
Michel, o idoso teimoso, bate na mesa mais uma vez proclamando ser amor. A mulher se levanta, ajeita o lenço e assevera: Michel, acorda, amor não dói.
Olho ao redor, não há dia que se pareça com qualquer coisa, deve ser efeito das frequências do Sol de Aqualine, que inclusive reduz como que por encanto grande parte das discussões em voga, acaloradas e um tanto repetitivas, transformando-as em meras balbúcias no estilo Vory v Zakone (ramo da Máfia russa) cuja tradução se faz "Bandidos dentro da Lei”.
Celeste avisa via torpedo que já está pronta para outra etapa da gincana diária.
O garçom não trouxe o suco e saí pensando num ditado antigo que, dependendo do momento, reserva sua dose de validade.
Passarinho que voa com morcego acorda de cabeça pra baixo.
(imagem: pintura de Mark Bradford)
Chamariz dezembrino
Tantos artigos nesse mundão. Estou esperando Celeste defronte ao mercado, espremido numa mesinha, estabelecimento de lanches do oriente médio, creio, recém inaugurado. Durante décadas essa casa ostentava a chancela de estúdio de design, que deve ter funcionado 2 meses no máximo, e depois mergulhou num misterioso abandono. Na época podia-se ver no interior um desenho do Audubon.
Em mesa próxima um suposto casal trava o seguinte embate:
Ela, grisalha, autoritária, com lenço turquesa no pescoço, diz: Michel, não é amor. Ele, vacilante, rechonchudo, envelhecido, retruca: é amor.
Coisas velhas parecem novas em folha, Fred Astaire, por exemplo, outro dia revi "Núpcias Reais”, tem aquela cena dele com o cabideiro ou coisa que o valha, mais a cena em que ele dança no teto e nas paredes. Tudo sem cortes, ainda por cima. Fala sério. Passaram 60 anos e dançarino algum chega aos pés dessa figura. Outra antiguidade me chamou atenção, The Fabulous Baker Boys, Michelle Pfeiffer cantando "More Than You Know", vixi, dá até arrepio, e "Ten Cents a Dance”, só a letra dessa música é uma aulinha de sociologia. Há um finesse no conjunto difícil de descrever, não tem em qualquer esquina. Se a gente não vigia, acaba acatando a disfunção como forma de arte.
Celeste avisa via SMS que vai demorar. Bidu.
Pedi um suco que não chega.
À medida que a situação avança, o casal ao lado se configura em terapeuta e paciente, e ou amigo buscando aconselhamento. Permanece a cantilena: Ela, definitivamente impositiva, exclama: não é amor. Ele, lamuriento, retruca: é amor.
A gravura que no passado pernoitou nessas paredes era, salvo engano, de um flamingo alaranjado e pescoçudo. John James Audubon, detentor de traço inconfundível, desses intrépidos que tratam a vida como o escultor manipula o mármore, nasceu no final do século XVIII em Santo Domingo, teve sua cota de distúrbios e um belo dia pegou um estojo de colorir e se mandou pro sertão norte americano. Resultado - The Birds of America, livro cuja valia hoje gira em torno de 13 milhões de dólares, dinheiro de pinga perto do valor histórico da obra.
Ai, ai, as trevas não podem ver a Luz, enquanto aqueles da Luz podem detectar os que se identificam com as trevas. Isso, com certeza, deve ser de alguma ajuda, no mínimo treina novamente nosso cérebro para algoritmos positivos.
Contemplando a paisagem de transeuntes, garçons, clientes, mercado apinhado na frente, céu de um estranho dezembro pairando, flanei no trabalho da senhora Ludovica Rambelli, que idealizou um espetáculo teatral chamado As pinturas de Caravaggio em carne e osso. Só vendo. Grande sacada. Ludovica subiu ano passado, aos 54 anos, deixou um legado ainda sem página na Wikipedia. Essas pessoas passam pelo mundão feito um cometa remoto de extensa cauda, que nem o Burt Munro, velhão maluco raiz que em 1962 saiu da Nova Zelândia com uma mão na frente e outra atrás, ou como diria a minha avó, sem uma gata pelo rabo, e foi pros States bater o recorde - intacto até o momento - das 1000 cm3 de cilindrada - 320 km/h, pasme, numa motocicleta mequetrefe de 1920 chamada Indian Scout, nem capacete apropriado o cara tinha.
Michel, o idoso teimoso, bate na mesa mais uma vez proclamando ser amor. A mulher se levanta, ajeita o lenço e assevera: Michel, acorda, amor não dói.
Olho ao redor, não há dia que se pareça com qualquer coisa, deve ser efeito das frequências do Sol de Aqualine, que inclusive reduz como que por encanto grande parte das discussões em voga, acaloradas e um tanto repetitivas, transformando-as em meras balbúcias no estilo Vory v Zakone (ramo da Máfia russa) cuja tradução se faz "Bandidos dentro da Lei”.
Celeste avisa via torpedo que já está pronta para outra etapa da gincana diária.
O garçom não trouxe o suco e saí pensando num ditado antigo que, dependendo do momento, reserva sua dose de validade.
Passarinho que voa com morcego acorda de cabeça pra baixo.
(imagem: pintura de Mark Bradford)