Assim ou ... nem tanto. 161

A cobra

O caminho é de pedras e vegetação baixa. Há sol forte e sei que o rio passa lá ao fundo . O céu é um vazio azul e tudo o que anima este tempo vem da erva : raros malmequeres bravios e um ou outro tufo de verde . Depois vi-a a ondear sobre a areia. Brilhante, negra, de olhos frios. Passa pelo meu pé como se não me visse e rodeia o pedregulho onde, incautos ao sol, indiferentes, desatentos e relaxados os lagartos apenas erguem e baixam as cabeças vermelhas, hábito seu, defesa milenar para acenar perigo a outros predadores. A cobra, porém, não se assustou. Dir-se-ia que outras vezes provara do petisco e logo se misturava ao granito da rocha, imóvel, ainda luzidia. A seguir mexiam as patas na sua boca e o lagarto sobrante, agora rápido, se lançava para o meio de espinhos e pedras correndo o medo por lugares que antes, por cautela, evitara. Saí do susto e movi-me na direção do rio. Disse que ia, que ficava para o almoço, que iria pescar. Digo tudo o que importa dizer para ficar a olhar-te, lesta, perna fina de gazela, olhos doces no meio de grandes pestanas, seios pequenos e anca larga. Digo tudo mas se fico contigo e ninguém vê, ganho timidez como esta que me tolhe antes de ver a tua casa, antes de abrir a cancela e afagar o cão, antes de explicar tudo o que não é preciso, antes de baixar os olhos por terror de que me adivinhes, antes de sentir na minha, a tua mão húmida da água onde a louça acabou de ser lavada. – O meu Pai não tarda. Ajeita-te por aí enquanto ponho a mesa. Fiz também um bolo a pensar que és guloso. Na verdade, não te conheço, nunca me contaste como és nem o que posso fazer para te ter muito mais próximo de mim. E tive vontade de fugir. Começava a sentir-me lagarto quando em contraluz o teu pai, de chapéu na mão, me disse: -sei que foi promovido e ganha agora bem. Venha sempre. Decididamente, tu és um amor e eu desejo-te. A cobra que haja por aqui é ele, pensei, agradecendo.