A parábola de Nicanor Belas Artes

Acho que Deus já se cansou de tanta hipocrisia. Aqui ao lado do meu barraco morava um cidadão acima de qualquer suspeita. Casa com piscina, vários carros na garagem e, dentre eles, uma pick-up que é o sonho de consumo de qualquer ladrão. Em todos os carros um adesivo: “Foi Deus quem me deu”.

Vendo a seca e a fome assolarem o Sertão nordestino, pus-me a refletir sobre o Deus que dá carrão a uns e tira o sustento de milhões numa só tacada. Certamente não pode ser o mesmo deus, dito justo e bondoso que leva multidões ao mais baixo grau de indignidade humana enquanto escolhe meia dúzia para filhos pródigos.

Mas haveremos de reconhecer que o mal é o que sai da boca do homem, conforme está na Bíblia. E se tiver a boca cheia de dentes e uma televisão filmando, aí a coisa pega. É o que acontece nessas correntes de solidariedade quando um famoso entra em coma. De repente multidões acodem de vela na mão rezando e chorando para a televisão. É uma patetice patética de certos patetas. Notadamente só querem seus quinze segundos de fama.

Antigamente, quando se botava dentadura nova, se dizia que o cara estava rindo até de desastre de trem. João Nogueira compôs uma música nesse sentido:

“(...)

Ele que tinha um dente só

Agora está de dentadura

Não é mais garfo de doceiro

Agora é boca de fartura

E pra mostrar a toda gente

Que tem dente na fachada

Até quando vê desastre

O Nicanor cai na risada

Ahahahahahahahahah”

Nicanor Belas Artes

Lá na Bahia a gente brincava assim quando o desdentado colocava dentadura:

- Fulano, caiu um avião!

- Quá! Quá! Quá! Quá! Quá!

- Sua mãe estava nele...

- Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá!

- Seu filho também!

- Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá!

Certo dia que me foge à memória, depois de ver no noticiário matutino que o cantor sertanejo Pedro Leonardo estava se recuperando de vento em popa de um acidente, a minha secretária me surpreendeu com uma confissão: Deus havia ouvido as suas preces e salvado o garoto. Olhei para ela e perguntei se também orava pelo Elenilson, o piscineiro do condomínio, que agonizava no leito de um hospital público, com insuficiência renal. Além de vizinhos, eles eram amigos de longas datas. Ela respondeu que não. Só tivera tempo de rezar para o cantor.

Ê, vida que segue! Diante da comoção em massa que nos abala quando algo de ruim acontece a um famoso, o que era uma simples gozação passou a ser a parábola da hipocrisia:

- Fulano, caiu um avião!

- Rsrsrs!

- Sua mãe estava nele...

- Rsrsrsrsrs!

- Seu filho também!

- Ashuashuashuashuashuashuashuashuashua!

- E também uma dupla sertaneja e um artista global...

- Buááááááááááááááááááááá!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Mas, voltando ao meu vizinho que usa dente de ouro e cujos carrões haviam sido presentes de Deus, dia desses a Polícia Federal bateu à sua porta com mandado de prisão, busca e apreensão. Descobriu-se que o Deus dos escolhidos chamava-se Corrupção.