1- A ponte, o passado e os vãos, por Erick Bernardes

Certas vezes, transitando pela ponte Rio-Niterói (ou será Niterói-Rio?), me pego em incansáveis especulações: assim nascem os mitos, frutos da teimosia do imaginário arbitrário e da impertinência da história.

Quantos corpos humanos serviram de sustentáculos aos vãos da ponte Rio-Niterói cujo real nome você não se lembra? Pois é, registro insano de político ditador. Vão-se os tempos, ficam as curiosidades. Será que morreram tantos nordestinos operários na construção da ponte, conforme nos narrou o vovô Zezito?

O meu avô tinha por hábito, toda vez que íamos ao bairro do Caju, contar-nos (a mim e ao meu primo) que ao arranjarem-se na construção civil, entre a Guanabara e o Rio, dezenas de operários ficaram soterrados. É um mito moderno que se criou dentro do fusca do pai da minha mãe. O nome imposto da gigantesca passarela sobre a Guanabara perdera a força na história trágica, ninguém chama de Presidente Costa e Silva a ponte assassina. Assim como a quantidade de homens trabalhadores mortos e soterrados, nos fundamentos daquela obra monumental, só faz ilustrar a mitologia acerca dos possíveis efeitos brutais do que se chama progresso. São mais perguntas que respostas o que temos à mão.

Se o velho Zezito mentia, não sei; talvez tenham narrado ao vovô assim também. E ele, saturado de elementos dos tempos duros e dolorosos que compuseram a sua vida de migrante infantil, procurasse reinventar a história ao invés de reconciliá-la. A ditadura abrandou-se e o país esqueceu. Mentira! Costa e Silva, ponte assassina, história!

Nosso saudoso sexagenário pintou então, com as cores da ficção, o retrato da família nordestina, transformando (enfim) aquele idílio retirante do século passado numa verdadeira epopeia brasileira. No entanto, diferentemente dos românticos, os grandes feitos aqui foram de pedra e cimento. Às armas dos varões serviram pás e enxadas, através das quais assinalaram com sangue a memória, o mito e a democracia brasileira.

Contudo, sempre é bom lembrar que o monstro maior se revelou em meio ao invisível, e também nas precárias condições de trabalho as quais os cidadãos obrigaram-se a suportar. E isso não parece ter mudado. De fato: as aves daqui nunca gorjearam, umas alimentaram esperanças, outras mais serviram às marmitas dos operários mortos na ponte Rio-Niterói.

Foto sobreposta de operários que contruíram a ponte Rio-Niterói/Fonte: Tudo Sim é História/Arte Jornal Daki

Erick Bernardes é mestrando em Literatura, escritor e crítico literário. Este conto faz parte da obra "Panapaná - Contos Sombrios", Editora Autografia.

*** Nota do editor: Dados oficiais contabilizam 33 mortes durante a construção, mas levantamentos da imprensa chegaram a 72 vítimas. Muitos desses trabalhadores que morreram durante as obras foram concretados juntos às vigas, e seus corpos jamais foram resgatados.

Fonte: https://www.jornaldaki.com.br/