Assim ou ... nem tanto. 160
A utopia
A terra vejo-a como a referência que perdi. Agora há muito mar e um céu liso, mudo, inexpressivo. Por isso decido olhar para dentro da amurada e ver melhor quem embarcou comigo . O deck está vazio e a quilha levanta vagas simétricas de espuma que um casal olha sem comentar. Há uma ligeira brisa que pede a camisola de malha e desço para a ir buscar. Uso as escadas e salto sobre o chão já vomitado. Chego e já se despem os colegas de camarote. Escolheram os melhores beliches e o que sobra, é o meu, de paisagem fraca, afastado das vigias. Deito-me vestido e vejo, balançando, as pernas magras do homem , os dedos de unhas tortas a gozarem a libertação das botas. O cheiro é denso, o palavreado entre o vernáculo admirado e o medo das náuseas que já revoltaram os estômagos mais frágeis. As sinetas anunciam o jantar e filas de passageiros enchem os acessos do refeitório. Depois, nada. Há bar e café, bebidas, meia dúzia de pessoas, um som longínquo do baile na segunda classe. A luz mortiça dos corredores, a lua para quem goste de ouvir o mar agora sereno. Chegas. Trazes jeito de marujo no andar e descalças os sapatos de salto. O vestido leve revela-te as formas e olhas primeiro o mar como se não me visses, depois o céu , as estrelas gordas daquela noite e, com voz fina comentas: - está aqui há muito tempo? Não o tinha visto, mentiu. Gosto de ficar aqui quando venho ao Continente. É um lugar sossegado, silencioso, sempre com aventuras potenciais. A última vez conheci o meu marido. Divorciei-me. Cortei com a família dele, desprezei a minha e vou até Lisboa. Não tenho ideias feitas . Aguentarei uns dias na Pensão mas se não arranjar trabalho logo, volto para o inferno. A minha Ilha é um barco maior mas ainda um barco no meio de nada. Quem está nele anda sempre nu mesmo com roupa. Procuro ter uma mão cheia de segredos e isso lá é uma utopia, disseste.