A ferramenta do futuro

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Um amigo, bacharelado em Matemática, foi convidado pra fazer o mestrado no Rio de Janeiro. De família humilde, o convite significava a possibilidade de ascensão profissional e a perspectiva de realizar o sonho de lecionar na própria universidade.

Arrumou as malas e se preparou para o percurso de quase três mil quilômetros que faria, de ônibus, entre Fortaleza e o Rio. Seria mais um filho dos “lábios de mel” de Iracema que conheceria de perto os encantos da “Cidade Maravilhosa”.

No dia da viagem, foi uma festa. A família acordou mais cedo. A avó, de um desvelo incomum, matou uma galinha caipira, a melhor que havia – não deixaria o netinho passar privações alimentares durante a viagem nem o deixaria exposto às comidas sem procedência – como dizia – das estradas; mesmo contra a vontade do neto, preparou-lhe a tradicional farofada cujo cheiro característico empestaria o ônibus durante os horários das refeições, denunciando nordestino a bordo.

Das imediações, surgiu um turbilhão de pessoas, gente de todo tipo, não importando o grau de parentesco. Vieram amigos, primos, o dono do mercadinho, gente que ele nunca tinha visto na vida. Todos queriam despedir-se. O calor humano difundido por Henfil ainda sobrevive em demasia entre o povo nordestino, tornando-se esperança viva de fraternidade em contraste com a frieza mórbida e o onipotente claustro que a selva de pedra, infelizmente, impõe-nos.

A viagem foi um misto de medo e de fascínio. Na fronteira entre os estados de Pernambuco e Bahia, uma forte escolta policial acompanhou os ônibus, seguindo o comboio por algumas horas. Motivo: temia-se a ação de uma quadrilha especializada no saque a ônibus de viagem que atuava naquela região fronteiriça.

A partir do estado da Bahia a paisagem foi, gradativamente, modificando-se: de um tom amarelo-alaranjado para um quase verde-oliva. As nuanças visuais da paisagem refletiam no íntimo do viajante, mudando-o de um tom triste e melancólico para uma esperança pujante depois do regressar vencedor. Sabia que deixara para trás a seca Nordestina, a dureza de uma vida áspera. Esperava encontrar no sul uma vida repleta de possibilidades, júbilos e prosperidade.

O curso teve início sem maiores inovações. Números e mais números. Cálculos e mais cálculos. Entre um cálculo e outro, um tempinho para ver o mar gelado carioca e a preferência cada vez mais nacional que desfilava a rodo, fazendo-o parecer um espectador de jogo de tênis: “– olha aquela ali, rapaz!... e aquela... Meus Deus!” – dizia num monólogo angustiante. Toda vez que aventurava sair para ver o desfile das cariocas na orla ou no calçadão das praias, voltava com o pescoço doendo de tanto que o movimentava na tentativa de visualizar a beleza da mulher carioca. Não sabia para que lado olhar. O que, porém, não mudava era o ângulo de visada que se mantinha sempre a altura da cintura.

Foi a diversas praias, de vários pontos do estado: Ipanema, Leblon, Copacabana, Botafogo, Barra, Itacoatiara – nesta última desfilavam as mais lindas beldades de Niterói, São Conrado e Itaipuaçu. Estava tão seduzido que imaginava a transferência do processamento criativo do raciocínio para aquelas ancas desenvoltas! Delirava. ‘Já imaginou isso com língua, falando... Que oratória!’ Fez um último paralelo: ‘os grandes pensadores da história universal versus as grandes bundas do início do século. Quanta evolução!’

Certo dia, enquanto caminhava por entre os corredores da universidade, observou o edital de um concurso destinado preferencialmente para engenheiros. Em não havendo restrições expressas quanto às demais graduações, resolveu inscrever-se. Ao final das inscrições, eram mais de setecentos candidatos para uma única vaga. Numa primeira etapa, três seriam selecionados. Após uma entrevista final, ‘o melhor’ ocuparia o cargo, percebendo um salário inicial em torno de cinco mil reais. Para um aluno de mestrado, família humilde e com uma módica bolsa de estudos de setecentos e vinte e quatro reais, paga pela União, nada mal!

Sai o resultado da primeira etapa do concurso e ele está relacionado entre os três classificados. Logo após a euforia e a felicidade veio o aperto: ‘Não terei chance! Competirei com sulistas. Eu, cabecinha chata, baixinho, magrinho, cheio de ‘inhos’; eles, provavelmente altos, olhos azuis... Não tenho chance mesmo’.

Desanimado resolve, à véspera da entrevista, ligar para o mentor, o professor Ciro:

– Professor. Passei num concurso. Amanhã é a entrevista e acredito que não passarei. O que faço?

– Seja verdadeiro. Apenas isso. Fale por você e seja a pura expressão da verdade.

– Obrigado.

Com esse propósito preparou-se para a etapa final. Confirmaram-se suas expectativas: os outros concorrentes eram dois “armários” de olhos azuis.

– Tô ferrado! – Pensou alto.

Foi o último a ser entrevistado. Durante a entrevista o avaliador perguntou:

– Você sabe falar inglês?

– Não.

– Então não desejaria trabalhar numa seção onde fosse preciso utilizá-lo frequentemente?

– Não.

– Você mexe com informática? Sabe trabalhar bem esse tipo de conhecimento?

– E muito.

– Então gostaria de trabalhar num setor da empresa onde a informática é de fundamental importância, penso?

– Também não.

O avaliador reflete um pouco e prossegue:

– Que não queira trabalhar num setor onde se use a língua inglesa até compreendo, mas não entendo o porquê de não desejar ir para um setor do qual tem profundo conhecimento. Isso é estranho. O que você quer, afinal, aqui na empresa?

– Quero pensar. Somente isso. Quero pensar e resolver problemas.

Não fizeram mais nenhum questionamento e encerraram a entrevista. Na manhã seguinte saiu o resultado e o cearense ficou com a vaga. Antes, porém, de assumir o cargo, o mesmo avaliador, pertencente à banca, abordou-o com a pergunta:

– Você foi verdadeiro ao dizer que vem para pensar ou foi artimanha?

– A única coisa que sei fazer bem, senhor, é pensar.

– Era justamente do que precisávamos, porque o restante as máquinas já executam sozinhas.

Fortaleza-CE, 31 de outubro de 1999, às 16h58min

Do meu llivro 'Crônicas e mais um conto'.