A cor do sonho!

Talvez o garoto de certa região periférica do país nunca tinha pensado tão grande em sua vida. Lutava todos os dias contra seus próprios preconceitos, sem mesmo ter noção do confronto diário que tinha com si mesmo. Cheio de estigmas que a sociedade criava a seu respeito e de seus pares, continuava em sua vida automatizada, buscando sei lá o que! Buscando algo que se assemelha a um sonho, que ora variava de ser alguém, sabe lá o que, ora poder fazer uma refeição que não fosse apenas feijão com arroz, e miojo nos dias mais corridos. Com dezoito anos estudava já no terceiro ano do médio, trabalhava, limpava a casa, cuidava dos seus três irmãos e de sua mãe que estava há dois anos na fila do SUS à espera de uma cirurgia de catarata que a cegou. Pai nem falava, a mãe não comentava e os irmãos não lembravam. Primogênito, ele era as vezes pai, mãe e provedor da família. A mãe recebia um auxílio de doença, era pouco, ele compensava com seus 40 reais ao dia como servente de pedreiro, algo que não gostava e não tinha vocação!

De fato ele exercia um papel que era além do que ele poderia, mas fazia tudo! Nem mesmo ele se dava conta, o que importava era fazer. Fazer para ter o que comer, para sair da escola, fazer para não faltar dinheiro, para seus irmãos não faltarem à escola e fazerem os deveres, fazer para sua mãe não chorar ou fazer por que tinha que fazer. Automatizado em suas funções, não tinha tempo para pensar se fazia ou não, se poderia ou não, ou se sonhava ou não. Acordava cedo, seis horas da manhã, pegava um ônibus para ajudar em uma obra no bairro do outro lado da cidade, era de um vereador, ele era igual a mim, dizia ele, - talvez eu queira ser igual? Ou não! As cinco da tarde ele voltava para casa tinha que pegar os irmãos na escola, fazer café da tarde adiantar o jantar e trocar de calçados com o irmão quatro anos mais novo, que já calçava o mesmo número. Tinha que revezar, pois seus sapatos do trabalho e únicos, já se entregavam com o cimento e cal. Chegava às sete e meia na escola, a aula começava às sete, o porteiro o deixava entrar, - merda! Sempre to atrasado!

Na volta, deslumbrado com o que o professor de história lhe disse; - Faça ENEM! Tem cotas para negros, você tem potencial! Faça arquitetura como você quer! E ele pensava por uma única vez que tinha pensado em algo, que não fosse fazer para comer, para não faltar dinheiro e para seus irmãos não faltarem à escola. Chegava em casa sempre muito cansado, ainda tinha sempre um folego para ver algo da escola, ainda que dormisse em cima dos livros. Acordava e tinha que fazer para viver, ou continuar. Mas o dia parecia mais leve. Ele podia fazer arquitetura. Fazer o tal do ENEM, que as pessoas acabam se atrasando, chorando na frente dos portões, e depois dando entrevistas para os jornais locais. Mas ainda tinha a tal das cotas...

-Mas já ouvi falar que isso é ruim. Não queria entrar por caridade...

No final do dia de trabalho passava por uma das maiores praças da cidade, onde tinham comícios, shows e muitas manifestações. Era uma época difícil, véspera de ano eleitoral. - Devia ser para o vereador. A sua obra nunca teve tão má vigiada! Ele saia muito!

Foi então que quando andava empurrado por uma força qualquer que movia seus pés cansados, de um dia de trabalho em um sol terrível, que via uma manifestação na praça, estava cheio de gente, com faixas, cartazes, exclamavam por muitas coisas, quase que não havia um padrão! Mas o que lhe chamou a atenção foi apenas uma faixa que dizia – Cotas não! Eu não quero vitimismo! Eu posso e eu tenho capacidade! Foi então que olhou atentamente e pensou, ainda confuso. Mas eu também posso entrar para arquitetura sem ajuda do governo. - Eu posso sim! Ou não?

Ele nunca tinha pensado nisso, pois nem mesmo em uma universidade pensava, arquitetura, era algo que fazia parte daquilo que pouco fazia em sua vida, sonhar. Pois tinha que fazer o que comer, não faltar dinheiro, e que seus irmãos fossem à escola. Mas foi então que encontrou o vereador, que quando lhe viu foi até ele. Foi então que surpreso ele olhou para todos os lados e pensou, ele está vindo em minha direção? O vereador chegou até ele e fez aquele gesto o qual ele à trinta quilômetro da sua comunidade, no bairro aonde auxiliava na obra, nunca tinha visto, lhe olhou nos olhos e lhe estendeu a mão. Logo depois lhe contou o que eles protestavam, e depois ele foi embora.

- Mãe quero fazer faculdade, o que acha?

Sua mãe sorriu e lhe disse, - isso é bom!

Ele sabia que ela estava mais preocupada com tudo, mas mesmo que quisesse esquecia da tal faculdade, ou da tal escola. Foi então que ele piorou ainda mais as coisas, perguntou algo que nem sua mãe sabia lhe responder: - Mãe nós somos vítimas? Eu posso entrar para faculdade sem ajuda, sem entrar com vantagem pela minha cor? Posso... Sua mãe nunca pensara em nada disso, e só pode mudar o assunto e deixar que ele esquecesse.

No dia seguinte ele chegou em casa com uma tal história de ser liberal, ter liberdade, dizia sua mãe a uma vizinha. Contou ele para sua mãe que foi a uma manifestação, e sua mãe logo advertiu, - Não quero filho meu na cadeia por bandalheira. E ele disse – Eles defendem as coisas certas. E continuou contando que agora defendia um movimento novo, que vai mudar o país, um movimento que diz que o Brasil é livre!

Foi então que em um domingo foi a um manifesto com seu novo grupo, e com o seu comprovante de inscrição do ENEM, protestava e levantava-o como um troféu, de disputar a ampla concorrência por uma vaga de universidade federal para arquitetura. Ganhara um tênis novo de seu novo amigo o vereador, que nele via uma inspiração, um de seu par, na cor, e no futuro na vitória também. E agora não mais se sentindo menos do que qualquer um, abdicando de sua posição de inferioridade, como o governo o tratava, inferior cognitivamente! É isso que as cotas dizem ao nosso respeito! Repetia o vereador em um discurso para os manifestantes. Ele agora podia, podia também sobre as mesmas regras. Pensava sobre um sentimento enfurecido de injustiçado!

Bom Eleições passaram, a prova do ENEM também e ele não entrou para arquitetura, continuou a se importar em fazer o que comer, fazer com que não faltasse dinheiro, fazer com que seus irmãos não faltassem à escola... E de fato agora ele tinha um caminho, tinha algo para lutar, pela arquitetura, pela causa do vereador, do movimento libertador, e tinha se exorcizado de seus estigmas, mas o seu cotidiano massacrante não lhe abandonou. Quando ele julgava ser capaz de fazer igual a qualquer um, ele esqueceu que nem qualquer um fazia igual a ele, trabalhar, estudar, cuidar da casa, morar em um local esquecido, com pouco dinheiro, 40 reais ao dia, dormir sobre os livros, rastejar de cansaço para à escola meia hora depois do que muitos, compartilhar o mesmo calçado com seu irmão mais novo... O fato é que potencial não lhe faltava de certo, difícil era acreditar que sobre ele não pesasse uma herança de opressão e de preconceito pelo simples fato de sua cor negra, e uma desigualdade social implacável com seus sonhos!

will robson santos
Enviado por will robson santos em 21/11/2018
Reeditado em 16/06/2020
Código do texto: T6508145
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