Consciência Diária
Abre a porta e ecoa no corredor: “Eduardo”... Prontamente ela levanta com carinho e preocupação para me conduzir na consulta. Na mesma porta, o médico inerte, com olhar ríspido e condenatório diz: “Senhora, somente os pais podem acompanhar a criança na consulta...”. Ela, doméstica, costureira, faxineira, cozinheira, cuidadora de idosos e pessoas com necessidades especiais; uma preta de respeito, guerreira em todos os sentidos e, acima de tudo, mãe, tem de provar a maternidade. Munida de todos os meus documentos e, infelizmente, acostumada a esse tipo de situação, age de forma mais natural possível, afinal, eu tinha algum quadro clínico que minha memória insiste em não lembrar. Mas, ela se lembra do fato com nitidez: foi com um pediatra, e que eu tinha infecção na garganta.
Consciência. Não é demais ter de lembrar essa triste herança dessa maneira, porque ela ainda é recorrente. Pergunto-me quantos passaram e ainda passam pelo mesmo constrangimento. Hoje percebo o quanto minha mãe foi (perdoem) foda pra aguentar esse tipo de situação de peito aberto e cabeça erguida. Imaginem vocês tendo de, pasmem, provar que pode ser mãe de um “crioulinho” (apelido que ela me chama, tão carinhoso), filho de pai branco e mãe preta. Cada dia que passa, eu percebo o quanto o preconceito enraizado é natural entre as pessoas.
Desde cedo eu, naturalmente, me debrucei sobre culturas distintas. De Chopin, Beethoven e Bach à Chico Buarque, Bezerra da Silva e Roupa Nova; de dança de salão à capoeira; de Missas ao culto aos Orixás; todas assistidas com respeito e, agora, entendendo o universo tão distante que cada uma exerce da outra. Uma cultura genuinamente e tradicionalmente branca, outra genuinamente e tradicionalmente preta. Dessa forma, apesar de ter admiração e respeito por todas, minha inclinação ao fervor do sangue crioulo que corre nas minhas veias me faz amar o Samba, o Maculelê, o Jongo, a Capoeira e a Umbanda. É a minha raiz.
Mais que isso, é a força da resistência dos meus heróis pretos que me faz ser aguerrido, corajoso, resiliente, persistente. É preto, é crioulo, é congo, angola, cabinda, yorubá.