Assim ou ... nem tanto.159
A Rua
A rua é, de longe, um lugar de passagem. Liga-nos à Praça e é, aparentemente, igual a todas as ruas sem importância. A única placa comemorativa que há diz que morara naquela casa um poeta. Foi o que sobrou da pedrada nos azulejos. Seria homem para duzentos anos a fazer fé nas datas que só se podiam adivinhar depois que foram destruídos os dizeres principais. Morara um poeta. Talvez houvesse memória dele escrita mas só sabendo o nome e a rua que, começa ali, só acaba na Praça. Há para ver as janelas da Luísa, altas, polidas de asseio, rendadas por dentro com pavões e rosas. Há a portada do velho Gabriel, seco, fumador, catarrento. Agora aparece, como os caracóis, depois da chuva se o tempo amaina. Traz a capa alentejana e uma boina basca. Tudo nele é estranho até o cachimbo muito saliente na mão cheia de velhice e nódoas negras. Vai e vem dentro de um silêncio que só a tosse quebra. Ao lado a casa dos petiscos, sebosa, de gelosias corridas àquela hora da tarde. Nem sempre abre, nem sempre a patroa está para atender bêbados e grelhar febras de castigo. Seguindo pelo lado do passeio mais largo conta-se a casa do padre que já não é padre e mora acompanhado com outra galdéria, o solar dos Bentos em ruinas e os quintais que sobraram das partilhas da Quinta Grande. O resto, casas de portas e janelas fechadas albergam as pessoas que trabalham em Lisboa e vêm só à noite. Sabe-se pela luz que sai das frestas da madeira apodrecida ou da soleira quando estão. E depois, deixa ver, ah, a casa do Manuel do Stand e o Stand cheio de carros e gatos ao sol. Pronto a rua cumpre-se assim neste correr de lugares sem grandes risos, sem amores com mistérios escabrosos, sem grandes devotos. A Praça, sim, sempre é outra coisa, imagino eu que ainda não a conheço.