O dia em que meu livro me salvou

Chovia fazia mais de 24 horas, a cidade tinha pontos de alagamento e a prefeitura havia informado que estávamos em estado de emergência. As aulas foram suspensas ainda naquele data e as pessoas já se preparavam para um segundo dia naquelas condições. Eu ria, ironicamente, diante dessas afirmativas chuvosas—imagina, se chover mais um dia assim pode chamar o Noé!

Realmente eu não acreditava em mais um dia de chuva torrencial, nem eu e nem a escola que trabalho e meus filhos estudam, porque ia ter aula no dia seguinte! Esse dia seguinte, era sexta-feira, um dia especialmente esperado por mim: o dia em que lançaria meu primeiro livro, minha pesquisa de mestrado, meu trabalho de dois e meio e mais nove meses de adaptação pra transformá-lo em livro. O lançamento estava previsto para 19 horas daquela sexta, bem no centro do Rio de Janeiro, outra cidade alagada pela chuva sem fim.

O Rio é uma cidade muito significativa pra mim, morei lá por anos e trabalhei por muitos outros. Tenho muitos amigos lá e outros nas cidades do entorno, então tinha que ser lá o começo dessa comemoração tão esperada. Meu marido, que ainda trabalha na cidade maravilhosa, escolheu o lugar, que segundo ele, era a minha cara. Morando a mais de 170 km, confiei nele e naquele dia 09/11 acordei ansiosa para que todos os detalhes do longo dia dessem certo.

Eu já deveria saber que “dar certo” não era uma coisa que dependia de mim. Passei anos estudando sobre os desencontros da vida, sobre dor, sofrimento e como não se deixar levar pelo puro ressentimento. A questão é que a vida, na prática, é sempre uma caixinha de surpresas, portanto, podia sim não dar nada certo e eu ia ter que me virar com o que viesse. De qualquer forma, segui fazendo a parte que me cabia naquele “combinado” com o universo. Acordei cedo, arrumei as crianças e coloquei tudo (quase) que precisava na mala do carro. Deixei o mais novo na creche (iria pegá-lo na hora do almoço para levá-lo a escola), segui pro trabalho com a mais velha (ela ficaria por lá o dia todo, era o primeira dia das provas trimestrais).

Tudo caminhando, tudo dando certo, mas a chuva eterna voltou cair e caía cada vez mais forte. Conforme ela aumentava meu desespero ia junto na mesma proporção e não me cansava de me perguntar: mas por que logo hoje!? Daí eu me lembrava do que eu mesma havia escrito: "Em nossas vidas, da mesma forma, mais cedo ou mais tarde, surgem as dificuldades e imprevistos que fogem ao planejado, e nessas horas as respostas prontas e bem definidas pela nossa história e experiência pessoal não funcionam." Ok, vida que segue…

Finalzinho da manhã e recebo uma mensagem do meu marido: "Amor, hoje lá no lançamento do teu livro vai ter uma banda, eu pedi a uns amigos aqui, é uma banda de reggae". Eu respirei fundo, considerando que ele fez na melhor das intenções e só perguntei: Reggae? Aí eu tive uma resposta mais coerente e honesta: "É…o dono do espaço esqueceu de colocar na agenda esse sarau lá hoje, aí um dos meninos da banda, que trabalha comigo, veio me perguntar se não dava pra mantermos os dois eventos juntos. Poxa, pra mim o lançamento de um livro de Filosofia ouvindo reggae é perfeito." Respira fundo de novo e segue o baile, porque a essa altura metade da rua da escola já estava alagada. Não tava podendo me preocupar com uma coisa que só ia acontecer as sete da noite, quando eu não sabia nem como sair do trabalho ao meio dia.

Respirei fundo mais uma vez e conclui que até conseguiria sair pra buscar o pequeno, mas teria dificuldades em voltar—melhor deixá-lo na creche e partir pro Rio! Acionei o casal de amigos que ficaria com as crianças antes da hora (bem antes). Expliquei que eles precisariam pegar cada criança num lugar da cidade, que a mais velha teria prova e por isso ficaria na escola até o fim do turno, as 17:50 horas, mas que o pequeno estava em lugar seguro (digo, seco) e que podia ser resgatado a qualquer momento.

Eu fiz essa ligação já de dentro do meu carro na expectativa de passar rapidinho em casa, porque (pasmem) eu esqueci a máquina de cartão ( e a comida da gata). Primeira tentativa de seguir pra minha residência—trajeto alagado, segunda tentativa—alagado e terceira também. No auge do meu desespero de ver a hora passando eu vi um carro seguindo por uma rua que, na minha cabeça, deveria me levar a algum lugar que me tiraria daquela ilha. Segui meu instinto, bem ao estilo nietzscheano, deixei que o mais antigo em mim guiasse meu caminho—mirei no carro e fui. Me perdi dele em algum momento, mas não larguei o instinto. Aquele carro já tinha me feito entrar em diversas ruas, em zona rural, mas tinha me colocado de novo numa área urbana, tava tudo sob controle. Respira e… avistei outro carro. Senti que podia confiar e foquei nele! Escolha sábia que me colocou na minha rota diária junto com um tremendo alívio.

Passei na loja de ração, comprei a comida da gata e parti pra casa. Em meio a chuva que caia, meu cabelo escovado (que não podia nem sonhar em molhar) e a sacola de comida pro animal resolvi dar uma fervida no feijão que estava sobre o fogão. Afinal, só ia voltar no dia seguinte, vai que estraga. Fogo acesso, tratei de procurar a máquina de cartão. Depois de gastar um tempão, finalmente achei e me dando conta da hora avançada, peguei a estrada o mais rápido que pude. A essa altura, já tinha recebido ligação da escola avisando que a prova da minha filha tinha sido cancelada e que eu já podia buscá-la (só que não). Mensagem para os amigos do peito e segui pro Rio!

A viagem seguia, eu sem almoço, a chuva fraca caindo, baixa velocidade. Realmente ia chegar depois da hora planejada, mas tava tudo indo. O celular havia mostrado que meus amigos já estavam com meu filho, a mais velha estava segura ainda na escola. Mais ou menos duas horas depois de começar o trajeto, senti um cheiro incomum no carro. No começo parecia que alguém havia liberado gases ali (não fui eu), mas aquele cheiro constante foi me lembrando outra coisa e de repente: o feijão! Meu Deus, o feijão no fogo! Joguei o carro no acostamento e tentando pensar rápido avaliei o que fazer naquele momento desesperador. Liguei pra minha vizinha e colega de trabalho. Sabia que ela não estava em casa, mas tinha o número da outra outra vizinha que com certeza estava em casa! No auge do meu pavor, falei pra ela que podiam arrombar a porta ou o que precisassem fazer, mas que apagassem o incêndio, porque depois de tanto tempo só podia já estar tudo em cinzas.

Voltei pra estrada e ficava me perguntando, de maneira já irracional, por que raios eu fui escrever um livro sobre sofrimento, porque com certeza eu havia atraído tudo de ruim pra minha vida! Isso era castigo, só podia ser! Eu pensava essas coisas de maneira desordenada, ao mesmo tempo que articulava um jeito de contar pro meu marido que a casa havia pegado fogo. Já tinha acertado comigo mesma que não contaria naquele dia. Depois pensei melhor e resolvi que deveria contar não só pra ele, mas todo mundo e pedir as pessoas que comprassem muitos livros pra eu reerguer o meu parco patrimônio. De repente meu livro virasse um Best seller por causa dessa desgraça, mas até eu poder comprar tudo de novo…quanto sofrimento…

Eu já não sabia mais o que pensar, só parava o carro de dez em dez minutos tentando saber notícias sobre a casa. Por fim, ela me retornou! Disse que eu havia deixado um dos basculantes da sala aberto e que a filha mais nova da nossa vizinha (que estava em casa) conseguiu entrar e apagar o fogo. Eu pensei, tá bom, a sala tá inteira e a cozinha pôde ser acessada, sem grandes transtornos, por uma criança. Tá ótimo!

Ainda me tremendo e agradecendo ao universo por não estar desabrigada e nem ter machucado ninguém, segui pro meu destino. Óbvio que eu cheguei bem depois do planejado, mas carro estacionado, parti pro local indicado. Levei um pequeno tempo pra identificar o lugar exato que o evento aconteceria e confesso que me surpreendi com o que meu marido disse “ser a minha cara”. Podia até ser a minha cara, mas lá pelos anos 2000 no início da faculdade de Filosofia. Bons tempos aqueles em que bares e restaurantes do entorno do Ifcs eram minha morada diária…

O tal menino da banda já estava lá passando o som. Ele veio falar comigo e deve ter me reconhecido pelo jeito meio desconcertado de quem chega num ambiente e não sabe se tá no lugar certo. Em dois minutinhos de papo descobri que a banda não era exatamente de reggae, mas uma mistura de sons que sim, tinha tudo a ver com filosofia.

Eles começaram a tocar enquanto meu povo não chegava, pausa no som e eu fiz minha fala. Por fim, eles voltaram com o som mais “tudo a ver” com um fim de lançamento de livro e início de uma boa noitada. Acho que combinamos, eu e a banda. Até propus fazermos isso outras vezes.

Muita gente não foi ou não conseguiu ir ao lançamento por causa da chuva, eu não consegui dar muita atenção aos amigos que lá estavam por causa da música e o lugar, sinceramente, não era a minha cara. Mas, a casa tava cheia, vendi livro pra gente que não conhecia, fechei contato com interessantes desconhecidos e ainda teve vale night sem as crianças.

No final desse dia agradeci por tudo, viveria tudo de novo, apesar de tudo. Afinal, como tá escrito lá no livro: "O eterno retorno permite a nós afirmar o nosso passado, o nosso presente e o nosso futuro partindo de um olhar sobre o instante, exatamente porque tudo parte sempre dele. É assim que um presente feliz pode, por exemplo, ser justificado a partir de um passado inglório—tal passado pode ter servido de trajetória necessária para se chegar ao presente instante feliz."

Quem sou eu:

Roberta Melo, autora do livro “Ressentir ou Afirmar? Perspectivas nietzscheanas sobre a dor”, editora Appris, 2018.