INQUILINOS DO UNIVERSO
Eram dois bancos de concreto, que a empresa mandou instalar numa expansão da calçada, ao lado da portaria. A finalidade era oferecer assento a algum particular que precisasse aguardar atendimento por parte da administração. Os dois bancos, juntos, comportavam de seis a oito adultos sentados.
À noite, entretanto, eles serviam de cama e, às vezes, de abrigo para um casal de moradores de rua que dormia sobre (ou sob) os mesmos, de acordo com as condições atmosféricas. Em noites de chuva, ou de temperatura mais amena, eles se encolhiam, cada um sob um dos bancos, para se proteger.
Ambos eram razoavelmente jovens, beirando os trinta anos. Oriundos do interior do estado, de alguma zona ribeirinha, eram analfabetos e não possuíam documentos, o que os impedia de arranjar emprego. Sobreviviam às custas de pequenos bicos e troca de favores, em que o pagamento, às vezes, era um prato de comida, uma roupa usada e, menos frequentemente, alguma quantia em dinheiro. Mas, apesar de analfabetos e ainda pouco adaptados à cidade grande, não apresentavam qualquer sinal de retardo mental. Captavam muito bem as impressões do dia e do ambiente, e conversavam animadamente com quem se dispusesse a dialogar com eles. Eu, que morava próximo à empresa, na qual, aliás, trabalhava, costumava passar à noite por ali, e não raro parava para um dedo de prosa com o humilde casal. Às vezes, me atrapalhava um pouco com o amazonês que utilizavam, mas ia aprendendo um pouco a cada dia.
Os funcionários da empresa sempre arranjavam uma quentinha e a levavam para eles, garantindo-lhes o jantar. Todos gostavam muito dos dois, que tinham bons modos e não faziam uso de tabaco nem de álcool.
Uma noite, por volta das 22:30 horas, eu descia a avenida pela mesma calçada em que eles dormiam, quando um caminhão passou por mim em velocidade desembestada, invadiu a calçada e atingiu o par de bancos, lançando-o no meio da avenida, com o casal e tudo! Eu estava a uns 60 metros do local, para onde corri o mais que pude. Quando lá cheguei, alguns funcionários já acudiam os dois, que choravam e sangravam muito. Colocaram-nos num táxi e tocaram para o pronto socorro.
O rapaz não resistiu e morreu naquela mesma noite. A moça ficou hospitalizada por longo tempo. Quando fui transferido de Manaus para São Paulo, em dezembro de 1987, ela ainda estava hospitalizada. No dia de minha viagem, a empresa já havia reconstruído os dois bancos. Mas aquele casal simpático, e já querido da gente, nunca mais veríamos ali, a conversar e a sorrir com a candura da inocência que Deus lhe deu.
Na coluna de um viaduto, no vale do Anhangabaú, em São Paulo, no já distante ano de 1988, li a seguinte pichação, feita por moradores de rua: "Somos inquilinos do Universo". Aquilo me chamou à lembrança o saudoso casal de Manaus e sua tragédia. Naquele mesmo instante, instalou-se em minha cabeça esta crônica, que hoje (trinta anos passados) ponho no papel.