CINEMA, BREJO & DAMA DA NOITE

Certa feita meus pais ganharam ingressos para o cinema do sindicato, filme de Tarzan. Tivemos de atravessar um brejo e pinguelo sobre o córrego Lavapés na mais perfeita escuridão. Ouvi cricrilos de grilos, coaxos de sapo e senti o aroma penetrante da dama da noite, embora meio aborrecido com aquela travessia, e expus a opinião, elogiei o perfume da flor e disse que os coaxos eram bonitinhos.

No cinema fiquei estupefato, Papai não levara dinheiro para balas ou pipocas e o filme era repetido, assistira várias vezes na TV. Emburrei-me pela falta de guloseimas e o barro nos pés devido ao brejo e, é claro, pelo filme, que além de repetido, não tinha dublagem nem letreiros.

Ao queixar-me pela quinta vez da falta de balas, Mamãe me deu um beliscão.

O irmão de minha mãe era presidente do sindicato, no fim da sessão veio falar conosco, perguntou se gostamos, minha mãe, toda melíflua, disse que sim, meu pai, também; disse-lhe que detestei, filme repetido, perda de tempo irmos: Minha mãe ficou furiosa!

Na volta tive profundo ódio pelos sapos coaxantes e gritei-lhes calassem a boca e disse que a dama da noite fedia, justo quando minha mãe recolhia uma muda, levei um chacoalhão de lambuja ! Isso só fez aumentar meu ódio pela falta de balas, de corrermos riscos de mordida de cobra ou areia movediça naquela escuridão do brejo e para quê? Ver um filme repetido e sem legendas! e então, o estopim, reclamei do tio, disse que só nos deu o ingresso porque era um filme de bosta. Ali mesmo levei uma surra de minha mãe.

Calei a boca, mas em pensamentos maldizia mãe e tio, que eram da mesma corja, tive profundo ódio e desprezo pela nossa pobreza e do beliscão, chacoalhão e surra : Malditos sapos, Tarzan, tio, mãe, pai e dama da noite !

Camilo Jose de Lima Cabral
Enviado por Camilo Jose de Lima Cabral em 14/11/2018
Código do texto: T6502308
Classificação de conteúdo: seguro