Epifania

A principio, existe uma atmosfera quase que ritualística em torno de tudo isso. Pois logo ao cair da noite, talvez por ser quando chega do trabalho, ele vem até a rua de cima para abrir seu barzinho. Um barzinho que faz jus ao diminuitivo, do tipo que é mais ocupado em torno de sua entrada, pelo lado de fora, que nele em si, pelo o lado de dentro.

Ainda sobre seu dono, ele entra pela porta lateral, abre a da frente, que só pode ser aberta por dentro, abre a janelinha de madeira - madeira podre, assim como também se encontra as duas portas -, liga um DVD e está feito, um barulho estrondoso toma conta de toda a rua.

E não contente, ele canta! Ah, como ele canta, canta altíssimo. Acho que é uma forma dele "avisar" que o bar está aberto...o que não resulta em muita coisa, já que é raro haver grande público. Então ele permanece por mais algumas horas ouvindo sua música, depois, desliga o som, fecha tudo e vai embora. Por vezes me perguntei o porquê de manter aquele barzinho aberto, talvez por apego, quem sabe precaução...Não sei, o que sei é que, muito provavelmente, não lhe dá lucro.

Vez em outra até que rola uma festa, dia de jogo importante é um pouco mais movimentado, porém são raros esses dias. O normal mesmo é a presença de suas duas amigas, ou, ele sozinho. Suas duas amigas costumam aparecer mais aos domingos: cantam alto, dançam bastante, ouvem as mesmas músicas que ele, bebem, talvez de graça, e, vão embora. São insuficientes para tirá-lo da mesmice de sempre. Daí ele recolhe tudo e fecha o bar. Ele sempre fecha o bar. Independente de todas as coisas, este fim lhe é inevitável.

Foi num domingo qualquer, muito pouco diferente dos anteriores, que presenciei aquele acontecimento. Próximo da virada de domingo pra segunda, após um dia bem agitado em seu barzinho, lá estava ele e suas duas amigas - e mais alguns outros do lado de fora.

Eles dançavam, bebiam, esbravejavam ao som das mesmas músicas de sempre, enquanto eu, alheio a tudo aquilo, me distraía balançando na rede aqui do terraço de casa. Eis que aquela música começa a tocar. Em vésperas de Carnaval, num barzinho de beira de rua e tarde da noite, toca um forró de quadrilha. Não, não era um forró da moda, desses que vemos nos programas de TV, era um antigo e interiorano forró de quadrilha. E quando dei por mim, lá estavam os três dançando, dançando quadrilha num cubículo chamado barzinho. Estavam alegres, de uma alegria espontânea, enquanto dançavam e cantavam. Eles faziam alguns passos de quadrilha, não muitos, porque eram somente três, mas isso não lhes impedia de tentar se movimentar de forma coordenada em um espaço tão pequeno. Nada parecia ser capaz de impedi-los de dançar aquele antigo forró de quadrilha.

Assim como tudo que é existente, a música chegou ao seu fim. Lembro deles terem sentado e conversado por alguns minutos, mas agora sem músicas para dançar ou cantar. Então uma das amigas se despediu dos demais e foi embora. Logo depois a outra também partiu, deixando o barzinho habitado apenas pelo seu dono. Ele recolheu as garrafas, as de dentro e as de fora, recolheu também os copos, varreu o chão, guardou as mesas, desligou o DVD, fechou tudo e foi embora.

Nunca tinha o visto daquele jeito. Penso até que, naquele dia, ao abrir seu bar, ele nunca imaginária fechá-lo ao som de uma quadrilha. Quem, em sã consciência, viraria a noite dançando quadrilha e em vésperas de Carnaval? Talvez, durante todos esses anos morando nesta casa, vivenciando os fatos deste rua, fora a primeira vez em que algo de verdadeiramente genuíno presenciei acontecer.

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( Três anos de Recanto se concretizaram no dia de ontem, grato a TODOS que me leram nesse maravilhoso e importante período. )

Um Rapaz Meio Estranho
Enviado por Um Rapaz Meio Estranho em 12/11/2018
Reeditado em 07/10/2019
Código do texto: T6501292
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