A velha bicicleta Caloy verde sem pedal

A velha bicicleta Caloy verde sem pedal.

Quantos adjetivos para uma bicicleta. Velha, verde e sem pedal. Não era só uma bicicleta, há um tempo, era o meio de transporte para o pai sapateiro. Por anos, ele atravessou a cidade com aquela bicicleta, para abrir a sapataria onde trabalhava. Enfrentando todas as intempéries, sol, calor, chuva, frio e vento, de casa para o trabalho e do trabalho para a casa. Companheira inseparável, companheira de muitos anos, até que ambos envelheceram, o sapateiro A tal bicicleta era verde, um verde abacate já desbotado pelo tempo, tinha um guidão em formato de V prateado, sua seleta era revestida com um plástico e tinha umas franjas coloridas que davam certo charme para ela. A bicicleta era tão velha que faltava o revestimento dos pedais. Marcas do tempo, marcas do uso. No lugar dos pedais só sobraram os dois ferros cilíndricos. A velha bicicleta tinha uma campainha para alertar os pedestres distraídos. O som que ela emitia era engraçado. – Trim.! Trim.! Trim.! E todos davam passagem para o sapateiro. Há tempos estava lá, encostada em um canto da casa. O sapateiro estava cansado demais para aventurar-se com ela. Para usá-la como meio de locomoção os pés do aventureiro tinham que moldar-se para que as correntes fizessem o giro completo. Depois de quebrada, com os pés calçados nem pensar! Era descalço que se conseguia êxito. O que não era problema para as filhas do sapateiro. Duas meninas de 7 e 8 anos que só entravam em enrascada. Duas meninas magricelas e cabeludas (cabelos sem corte há anos) que adoravam aventuras e por consequência só se metiam em encrencas. Verão de 1973, em uma tarde de sol quente, depois da aula, as duas resolveram fazer um passeio de bicicleta, sem autorização da mãe, assim de fininho foram saindo. Um passeio curto, até a casa da prima Marilda, que não morava no bairro, lá na periferia... Sua casa ficava na Rua Santa Cruz, uma rua que tinha uma ladeira íngreme revestida com lajotas de cimento, onde as crianças adoravam descer com o carrinho de rolemã. A sensação da descida era de estar em uma montanha russa, aquelas de parque de diversão. Ás vezes via-se, uma, duas e até três crianças em cima de um carrinho, descendo aquela ladeira. Crianças empilhadas em cima do carrinho. O vento no rosto, o frio na barriga, a liberdade! Motivos de festa e alegria para aquelas crianças que passavam os dias na rua e que adoravam aventuras. E lá se foram as duas irmãs, aventurar-se pela Rua Santa Cruz de bicicleta. Uma pedalando e a outra de carona, em pé, no ferrinho da roda traseira, descendo a ladeira. Velocidade e sensação de liberdade, gargalhadas, festa e alegria. Uma pena, porque a alegria não durou por muito tempo. No melhor da descida, velocidade extrema, a menina maior que estava “pilotando”, ao fazer o giro nos ferros do pedal com os pés descalços, deparou-se com uma lajota sobressalente e arrancou a unha de um dos dedos do pé. Caíram da dita bicicleta, rolaram ladeira abaixo. Que susto! Pelos deuses ou por sorte, o único prejuízo foi uma unha, porém era sangue para todo lado! A rua parou para socorrer a menina. Os vizinhos chamaram a prima Marilda, uma menina também de oito anos de idade, que assustada, rapidamente chamou a mãe, que chamou a mãe das meninas. E lá se foram todos para o hospital, no carro de um vizinho que ofereceu socorro, ainda bem. E a menina berrava aos quatro ventos. Debatia-se, ninguém a segurava, o médico plantonista, as enfermeiras e a família. Muitas pessoas envolvidas na força tarefa, ou seja, fazer o curativo no dedo daquela menina chorona. Depois do susto, a mãe muito brava disparou uma enxurrada de xingamentos e aplicou um castigo para as duas meninas. A bicicleta? A bicicleta, velha, verde e sem pedal foi vendida para o ferro velho, foi considerada um perigo nas mãos daquelas meninas. Foi um chororô! O sapateiro ficou triste por desfazer-se de sua companheira. O que restou da bicicleta? Inesquecíveis momentos, lembranças de uma infância feliz.

Fim

Rose Tureck

22/10/2018.