As Canetinhas Silvapen

Década de 1970, pequenos flashes de lembranças que marcaram uma vida. Ela foi perseguida pelo sistema desde os sete anos de idade por não usar o uniforme oficial da escola. Parecia diferente, se vestia diferente. Mas seu sonho não era usar o uniforme obrigatório e ser enquadrada no sistema. Ela só sonhava, queria e pensava em uma coisa: as “insuportáveis de lindas” canetinhas coloridas. As canetinhas Silvapen. Elas vinham numa caixinha branca, perfeitamente encaixadas. A tampa de acrílico fechava sobre elas e guardava todas as cores. Fora dali, elas se encaixavam perfeitamente nas mãos. Traços leves, para não estragar a ponta. E as cores surgiam magicamente. Tudo ficava mais lindo e colorido. Por um momento, nada mais importava - nem as notas abaixo de sua expectativa. Ela era a primeira aluna da classe, com ótimas notas. Ótimas significavam 10. Sempre. Se tirasse uma nota menor que 9,5 era o fim do mundo. Chororô desesperado amparado pela coitada da mãe. Na época não existiam letras, eram números que definiam as notas das provas, de 0 a 10. Os dois números juntinhos (1 e 0) eram uma rotina, uma recompensa, às vezes - sem soar arrogante - apenas uma constatação. Em compensação todo mês ia parar na diretoria. Conversas repetitivas com um personagem temeroso: o diretor. Quando a professora chamava-a de canto e pedia educadamente para ir falar com ele, ela já sabia qual seria o trajeto. Ela teria que atravessar aquele imenso corredor, com bancos de madeira brilhante. Ia pisando levemente no piso de madeira que mais parecia um espelho no chão de tão limpo e encerado. Percorrendo aquele caminho fitava os quadros pendurados nas paredes, com pessoas ilustres, que provavelmente já haviam morrido. Ela tinha medo de fantasmas, mas não deixava de se perguntar como e quando aquelas pessoas dos quadros haviam morrido... Perdida em devaneios chegava à sala do diretor. Um homem de meia idade, até que era simpático, terno amarrotado e cheirando a naftalina (aquelas pastilhinhas brancas que espantavam baratas). Acima de sua cadeira ficavam pendurados os galhos de uma planta que chamavam de samambaia. Ele sentado com a planta acima de sua cabeça também parecia um dos quadros do corredor. Será que ele também iria virar um quadro pendurado no corredor da escola? Seus olhos eram pequenos. Ou melhor, ficavam pequenos. Ele usava uns óculos grandes e pesados, lentes grossas, espessas como o fundo de uma garrafa. Aliás, fazia sentido chamarem aquelas lentes de óculos de fundo de garrafa. O diretor abria a porta e ela mansamente entrava. “Menina sente-se”, dizia. “Não, Senhor! Prefiro ficar em pé”. “Parabéns, você é a melhor aluna da classe”, iniciava ele. “Obrigada, mas têm a Alice e a Magali também”. “É sobre você, não é sobre a Alice ou a Magali. E é a quarta vez que é chamada para a diretoria. Você sabe por quê?”, perguntava. “Sim, eu sei.” E sabia mesmo. E sabia como continuaria a conversa. “Sua mãe não comprou o seu uniforme ainda?” “Não, ela disse que vai comprar.” “Mas já está no meio do ano e você falou isso na última vez que esteve aqui...” Ela suspirava e aguardava o sermão. Já estava acostumada com o olhar do diretor, aqueles olhos pequenos por trás daqueles óculos de fundo de garrafa, havia decorado o seu sermão, e assim foi até ser transferida daquela escola para uma outra, nova, em seu bairro, na periferia. Não deu tempo da mãe comprar o uniforme. Não se sentia culpada ou envergonhada por não estar usando o uniforme obrigatório para todos os alunos. Ficava brava com as notas abaixo de 9,5 e queria voltar logo para a classe para não perder as explicações da professora. Tudo o que a professora falava conseguia guardar em sua mente. As datas, os nomes, as horas, os locais. Tinha um raciocínio rápido. As continhas de matemática eram as suas preferidas, resolvia como se fosse um desafio e acertava todas, era a primeira a terminar e apresentar o resultado para a professora. Década de 1970 em plena ditadura militar. Estudar para algumas crianças era um privilégio. Escola era para as crianças ricas, não para ela, cujo pai era sapateiro e a mãe, operária de fábrica. Material escolar, uniforme, mala para levar o material. As malas eram de couro, poderiam ser preta, marrom, bege. Tinha também as lancheiras de plástico colorido, que dava para levar o lanche, um pão com alguma coisa para preenchê-lo, um potinho dentro da lancheira para colocar um suco, um leite com chocolate, um café com leite - o leite às vezes azedava e ficava horrível. As meninas usavam saia xadrez, camisa branca com o emblema da escola no bolso (tinha que comprar o emblema da escola) sapatos pretos, meias até o joelho que eram obrigatoriamente brancas. E os meninos também, só que em vez de saias eram shorts. Suas roupas eram doadas pela amiga da mãe, Dona Julice, também operária só que casada com um pedreiro. Pedreiro ganhava mais que sapateiro e ele não era um simples pedreiro, era mestre de obras. Saias, camisas, chinelos, sapatos, tudo usado. As peças poderiam ser maior que o seu corpo, não tinha problema. Estava vestida. Os sapatos o pai sapateiro reformava, pintava e colava a sola. Ficavam novinhos em folha. Um lápis e um caderno de brochura eram seu material escolar, não precisava nem de mala para carregá-lo. Não se envergonhava. Quando tinha que pintar um desenho pedia emprestado o lápis de cor. Trocava favores ajudando os colegas de classe com a resolução das continhas de matemática. Tudo estava bem... não fosse por um detalhe: a canetinha hidro cor com doze cores. Tinha até de vinte e quatro cores na época, mas ficaria feliz com a caixinha de doze cores. Doze eram suficientes. Não saberia o que fazer com 24 cores numa época bicolor. Com 12, daria para enfeitar o caderno, deixá-lo colorido, alegre. Gostava de desenhar borboletas, flores, rios, nuvens, passarinhos... Até desenhava, mas não dava para dar cor, tinha que pedir os lápis de cor emprestado. Canetinhas coloridas, vermelha, rosa, laranja, amarelo, verde claro, verde escuro, azul claro, azul escuro, marrom escuro e claro, preto, quanta cor... Seria um deleite se as tivesse. Mais tarde até ganhou a canetinha hidro cor Silvapen, de 12 cores, foi um presente, mas isso faz parte de outra lembrança que contaremos depois.

Rose Tureck

05/10/2018.