Heroi anônimo
Domingo, tarde chuvosa, céu carregado de nuvens escuras anunciando chuvas pesadas. Eu aguardava para ver se o tempo melhoraria, precisava fazer um voo de treinamento. Como o tempo não melhorou, os alunos foram embora um a um. Não era possível voar as aulas praticas nestas condições, assim o aeroclube foi esvaziando, e no final da tarde por volta das 16 horas, somente eu habitava as suas instalações.
Um olho no céu, outro no relógio, atento para não exceder o pôr do sol. Resoluto, resolvi aguardar mais um pouco na esperança de uma melhora para tentar fazer um voozinho, antes de ir embora. Olhei para o céu e fiz uma nova leitura na esperança de poder alçar voo ao seu encontro. Mas, às vezes ele responde com ventos, chuvas, raios, trovões, ou também nos abre os braços com um céu de Brigadeiro. Diz um ditado... "Chuva na serra piloto na terra”.
Minha persistência foi recompensada, quando a tarde se preparava para dormir, e como prêmio pela minha perseverança, me ofereceu o que eu tanto esperava... Uma trégua. Como já havia preparado o avião, embarquei e assumi o comando, rapidamente taxiei para cabeceira da pista e efetuei os procedimentos previstos.
Ataco a manete de potência até o máximo enchendo o motor. Inicio a corrida, ao atingir 65mph puxo suavemente o manche para trás e decolo. Como não poderia ir muito longe, subi em espiral na vertical da pista, ganhei altura e estabilizei a três mil pés. Voei naquele único espaço azul entre as grandes formações. A minha direita, havia um paredão de cúmulos (nuvens densas) com a coloração chumbo, e à esquerda outro paredão vertical, que se desmanchava como uma cachoeira gigante precipitando-se no vazio do precipício, sobre a planície. À minha frente uma abertura em forma de retângulo bem definido, por onde se espremiam os raios solares, era como uma rodovia pavimentada de brilhantes, multicolorida.
Naquele dia o sol se despedia de mim com um abraço aquecido e banhava o horizonte com cascatas de luz douradas, para completar, um lindo arco-íris com seu dorso colorido, apoiava suas extremidades nas encostas verdes dos vales. Um espetáculo no palco celestial.
A paisagem abaixo mais parecia uma gravura dos livros infantis, aquelas que quando crianças, ficávamos horas e horas, olhando e desejando entrar na pagina e fazer parte delas. Pois bem, ali estava eu compartilhando aquele incrível momento com as aves, principalmente com os meus amigos alados, os urubus.
Para que os grilhões que nos prendem a terra sejam quebrados, precisamos de artefatos voadores, que possibilitem visitar este maravilhoso mundo tridimensional, e quando lá estamos, nos sentimos exatamente iguais a eles, a palavra liberdade ganha sentido, e o paraíso se materializa.
Prossegui ganhando altura, quando cheguei a quatro mil pés, novamente estabilizei entre os cúmulos, e tive a impressão que estava entrando no portal do céu. Solitário e circunspecto, confesso que naquele momento por alguns instantes me desliguei da realidade.
O criador me mostrou uma ínfima parte das suas incontáveis obras. Saciada a minha sede, a contra gosto desci em voo planado em rumo ao solo, contemplando a paisagem que crescia abaixo. Toquei suavemente a pista ainda úmida e completei o pouso, taxiei até o pátio e hangarei a aeronave.
Fechei a sede, do aeroclube, entrei no carro e retornei para casa, sentindo-me assim, como os pilotos da “segunda guerra”, os aviadores de caça, que após uma incursão nos céus fumacentos, retornavam ilesos a sua base, mas eu... Era apenas um herói anônimo.