Entre trilhos
Há narrativas caminhando e contorcendo-se por todos os lados. Basta olhar em volta para perceber que a vida é um amontoado de experiências diversas, sedutoras, desconhecidas e entrecruzadas. É preciso somente atentar aos signos, aos símbolos gravados cuidadosamente nas páginas amareladas do cotidiano.
Um pé solitário de um velho tênis pendurado na rede elétrica, próximo à estação do Maracanã, uma moradora de rua carregando pelas mãos a filha, uma criança coberta de sujeira e esperança, uma página de livro solitária e solta, levada pelo vento do final da tarde de verão.
Tantos anônimos, tanta vida, tanta carência. Carência, inclusive, de assunto. “o lugar onde vivem os assuntos que merecem uma crônica” está repleto, saturado, e assim, todo excesso tem sob si uma falta. Penso no que falta. Penso em desfechos possíveis e plausíveis para a enxurrada de vida desconhecida e emaranhada que me cerca e envolve. Vida que precisa ser desvendada nas entrelinhas do despercebido. Vida enrugada e coberta pelos entulhos diários.
Entro então no trem expresso com as observações e os pensamentos na bolsa preta, desgastada e costumeira. Sento-me próxima à porta enquanto misturam-se no ambiente acalorados debates políticos, gritos de alguém que oferece picolés, agulhas, amendoins e fones de ouvido, além de duas ou três jovens risadas que evidenciam quanta beleza e energia há em amar a tudo e preocupar-se com nada.
Durante esse sacolejo ruidoso, minhas mão distraídas e cansadas, de súbito, recebem de um menino descalço, trajando apenas uma bermuda azul surrada, um pequeno papel escrito a mão e já gasto pelo contato com outras mãos diversas e igualmente absortas. O bilhete era uma pedido de ajuda para a família, da qual fazia parte uma criança menor que necessitava, além de tudo, de fraldas e leite.
Vasculhei assim o bolso e dei ao mocinho duas moedas encontradas, devolvendo também o papel amarelado contendo o pedido de ajuda. Ele recebeu sorrindo e se retirou rapidamente.
- Que Deus te dê em dobro – disse o rapazinho. Afastando-se enquanto eu procurava, sem sucesso, olhá-lo nos olhos. Ele guardou as moedas no bolso, junto de mais algumas recebidas das pessoas próximas, e seguiu em direção à porta do lado oposto ao lado em que eu estava.
No momento em que o trem parou na estação seguinte, o menino desceu apressado, indo ao encontro de um senhor magro e sisudo que parecia esperá-lo. Eu continuei observando de dentro do vagão. A criança retirou do bolso todo o dinheiro recebido e entregou-o ao velho que, sem olhar, enfiou a quantia no bolso. O rapazinho seguiu, de bolsos vazios, parando sozinho um pouco mais adiante, certamente para embarcar no próximo trem e continuar a empreitada.
As mãos vazias e o olhar perdido. O bolso sem nenhum centavo. O senhor se afastava. O menino aguardava. As portas do trem fecharam para que a viagem continuasse. A exploração continuaria em oito minutos e meu sorriso continuaria coberto por uma nuvem cinza durante todo o dia. As minhas inquirições então saltaram da bolsa: E as necessidades do moço e do bebê que integrava a sua família? O que o velho faria com o dinheiro? Haveria algum grau de parentesco? As possíveis respostas ficaram sobre os trilhos.
Há histórias incompletas. Há inúmeras narrativas sem desfecho. Livros sem as páginas principais misturados à outros igualmente inacabados. Segue-se o trem, contudo, as histórias ficam, nuas e desconhecidas, passando rápidas e cinematográficas pelas janelas enquanto no ar apenas ressoa a frase: - Que Deus te dê em dobro.