Nem todas as crônicas são meras crônicas
Pai e filho eram grandes amigos. Compartilhavam suas coisas com muito carinho. Até que numa manhã de sábado de 2002, o pai tem hemorragia intestinal e morre. O filho, judeu como o pai, vivencia o luto seguindo os ritos expressos pelo judaísmo ortodoxo, apesar de pouco cumprir normalmente os costumes impostos pela sua religião. Isso o confortou bastante e ajudou a superar o impacto da perda. O filho toca sua vida. A lacuna causada pela ausência do pai nunca foi totalmente preenchida. Vez por outra a figura dele aparece em lembranças ao longo do dia que trazem muita emoção e saudade. Se passam 16 anos do falecimento. Tempo mais do que suficiente para ter cicatrizado a ferida da sua orfandade paterna. Numa noite, o filho recebe num sonho a visita de um anjo. Que informa que Deus de alguma forma tomou contato com aquela saudade que ele tinha e se comoveu. O Criador, que sentia tudo o que passava na alma dos homens, bichos e plantas - dor, medo, angústia, revolta, tesão, alegria, ódio, desejo, compaixão, fé etc. - de alguma forma se abalou com o que vigorava no coração daquele filho. E resolveu fazer uma exceção à regra da separação vitalícia que a morte decreta. E envia através do anjo uma proposta. Se o filho tomasse certo veneno, de efeito letal, ao invés de morrer, o pai seria trazido de volta. Vivo e exatamente como estava naquele sábado fatídico. Esse veneno apareceria num pote dourado. Mas havia uma condição para que o milagre ocorresse: o filho não poderia falar pra ninguém a proposta feita por Deus através do anjo enviado. E a oferta só valeria pra aquela noite e nenhuma outra mais. O filho acorda, meio assustado, vai até a cozinha tomar água e encontra algo diferente do habitual sobre a pia: um pote dourado. Ele, o filho, já com 60 anos, se vê diante de um dilema. Continuar no curso de sua vida ou abraçar a oportunidade de ter o querido pai de volta, amigo fiel de todas as horas. Dúvidas inundam sua cabeça naquele momento: será que o sonho com o anjo foi "real"? Será que Deus está fazendo mesmo aquela proposta ou não passa de delírio ou até certa loucura? Tomo ou não tomo o que tem dentro do pote dourado? Aqueles segundos de indecisão pareciam séculos. O filho olhava para o tal pote com mistura de descrédito e esperança. Então decidiu o que fazer.
Eu sou o filho e agora vou dormir. São exatamente 00:37 do dia 8/11/18. É possível que terei um sonho diferente daqueles que, habitualmente, fazem parte dos meus sonos. Boa noite e até amanhã.