OS FILHOS DE DEUS
Apesar do inverno o dia foi quente. No final da tarde os termômetros da Alameda marcavam 30º graus. Deixei o carro em casa e resolvi ir de ônibus ao centro da cidade. Da estação das barcas o por do sol é belo e nostálgico nos levando a momentos de paz e reflexão. Os automóveis nervosos e apressados ultrapassavam o ônibus como se estivessem buscando um abrigo seguro para proteção durante noite que não tardava a chegar.
No rádio do ônibus tocava WONDERFUL WORLD enquanto no engarrafamento o ônibus se deslocava lentamente. Em um ponto de embarque de passageiros uma mulher sinalizou e o motorista parou, deixando-a entrar pela porta da frente. Seu aspecto logo chamou a atenção e me reportei às imagens que vemos nos noticiários sobre pessoas pobres de países africanos assolados pela guerra e pela miséria. A esquálida mulher entrou no ônibus deambulando com dificuldade, trôpega e aparentando necessitar de ajuda. A impressão era que ela era portadora de algum tipo de paralisia cerebral leve ou talvez a sua dificuldade em se locomover fosse em decorrência da desnutrição grave. Pensei em ajudá-la mas logo ela se acomodou em uma cadeira atrás do motorista. Seu aspecto era deprimente; franzina mulher de cabelos curtos encarapinhados ao couro cabeludo, corpo negro trajando vestes desgastadas que pouco ocultavam sua magreza. Braços finos e lânguidos extremados por mãos trêmulas que mal a ajudavam no sustento do corpo ao se locomover. Pernas igualmente disformes não diferenciando coxas de panturrilhas, deixando à mostra os contornos esqueléticos. Apesar de negra, a pele era sem brilho e evidenciava os sinais de desnutrição. O olhar transparecia um vazio profundo, sem perspectivas e sonhos demonstrando amargura.
Enquanto tocava a música, o sol lentamente se encaminhava ao ocaso. De repente a mulher com alguma dificuldade virou-se na cadeira, olhou para os passageiros e com a voz trêmula e murmurada em uma expressão angelical e inexplicável cumprimentou a todos: “boa noite, irmãos”! Aquele cumprimento calou o ônibus e apenas se escutava a música e os carros do lado de fora; todos os passageiros fizeram silêncio como se respeitando a condição e a dificuldade da mulher. Após o cumprimento e um breve silêncio, a mulher em um português impecável, apesar do seu estado de miséria, começou a falar: “meu companheiro está desempregado e passa a noite catando papelão e materiais diversos para reciclagem, que vende na manhã seguinte. O quilo do papelão é vendido por R$ 0,20 e pouco se encontra por causa do número de pessoas exercendo essa atividade. Quase sempre ele retorna para casa com pouco mais que R$ 2,00. Não dá para nada. Pagamos R$ 150,00 pelo aluguel do barraco em que nos abrigamos. Este mês meu companheiro só conseguiu com a vendo do material encontrado R$ 70,00 que entregamos à dona do barraco, ficando devendo o restante. Nos alimentamos da sopa que pessoas caridosas distribuem a noite em pontos da cidade e meu marido recebe e leva para casa, e é essa sopa que ainda nos mantém vivos. Nos vestimos e calçamos do que encontramos no lixo. Tenho um filho com seis anos mas sua aparência é de criança com dois anos, devido a desnutrição, e se ainda não morreu é porque consumimos a sopa e por causa de minhas preces de mãe desesperada. Estou grávida de seis meses e este bebê que trago no meu útero provavelmente não verá a beleza do dia pois sinto que não resistirá. Percebo no meu corpo a fraqueza tomando conta de mim, minhas energias se esvaindo como gotas de orvalho nas folhas ao sol da manhã. Já pensamos eu e meu companheiro em suicídio como forma de abreviarmos nosso sofrimento, mas relutamos e decidimos por viver porque somos filhos de Deus e sei que ele não desampara seus filhos. Resolvi reunir minhas últimas forças e sair para pedir. Pedir, meus irmãos é um ato de coragem e requer humildade. Tenho coragem de pedir como não tenho coragem de roubar, assim humildemente pelo meu filho e por este ser que trago no ventre, venho até aqui implorar a todos que ajudem esta mãe desesperada. Não me interpretem como leviana nem oportunista porque não quero com minha história tocar os vossos corações, mas apenas apelar para o sentimento fraterno e caridoso de cada um. Preciso levar algum valor para casa para ajudar meu companheiro a saldar a dívida do barraco e ter algo mais substancial para nos alimentarmos. Não importa se não me derem nenhum valor, mas sei que em vossos corações a minha história fomentará uma prece que ao menos nos servirá de consolo”.
Após o relato da frágil mulher a maioria dos passageiros comovidos a ajudaram ofertando alguns valores. Confesso que não contive as lágrimas pois sua história me tocou, razão pela qual a estou narrando agora.
Enquanto as pessoas gradativamente iam entregando alguma coisa para ela, o ônibus aproximava-se do ponto final. Lá fora a noite já iniciava e pouco se via de vestígios do sol. A música parou de tocar e a mulher entre lágrimas e visivelmente emocionada agradecia a todos a todo instante com um “Deus os abençoe, meus irmãos!”. Um garotinho loiro de cabelos cacheados aparentando não mais que quatro anos, veio do fundo do ônibus com uma cédula de dois reais e entregou àquela pobre mulher dizendo: “tome. É para seu bebê não morrer”. Ela afagou a cabeça do menino com extrema ternura e disse: “obrigado, anjo. Obrigado anjo de Deus!”.
Descemos do ônibus e confesso que fiquei por instantes sem saber para onde ia nem o que fazer. Apenas pensava naquela mulher que sumiu da minha vista no meio da multidão.