HORTÊNCIAS NO INVERNO


Heloísa adorava hortências.
Heitor as plantara no jardim daquela casa , na rua das Acácias,pra onde foram morar assim que se casaram.
As primeiras floradas azularam setembros do jóvem casal no auge de vitalidade e sonhos.
O tempo correu e agora amadurecidos,tentam resignar-se diante da impossibilidade comprovada de virem a ter filhos.
_É vontade de Deus ! É o que o destino nos reservou dizia Heitor na tentativa de animar "Helô" que não acatava com tanta facilidade a idéia.
Conhecidos como "o casal da casa verde",haviam conquistado a amizade das pessoas.Todos lhes admiravam naquelas redondezas.Na moradia ampla,embora modesta, sobressaía-se a beleza do jardim e a profusão de hortências ladeando os muros,o caminho da garagem,o portão de entrada...
Foram envelhecendo aos acordes da canção que mais admiravam.
Era cena comum,na varanda da casa,o tricotar de Heloísa,e ao seu lado,no ir e vir da cadeira de balanço,Heitor entoando-lhe aos ouvidos um conhecido refrão:

"Os sonhos mais lindos,sonhei...De quimeras mil um castelo ergui..."
Havia tamanha entrega e amor naquêle gesto que provocava à quem por ali passava,um olhar de cativante ternura sobre o casal.
Heloísa, lisongeada, sorria disfarçando.
Balançava a cabeça num ar de pouco caso.
Algumas vezes,incontida,precisava enxugar no avental a emoção que lhe embassava as lentes.
Se felicidade realmente existisse,certamente havia se acomodado naquêle endereço.A combinação de ambos era perfeita:Cumplicidade,carinho,nenhuma agressão... Quando surgia o menor vestígio de desentendimento,conversavam calmamente e promoviam acordos mútuos.
Uma enfermidade acometera-se de Heloísa,roubando-lhe parte dos movimentos.Heitor,resignadamente a penteava,calçava-lhe meias e sapatos,servia-lhe refeições e até lhe borrifava a sua colonia preferida.Arrumava a casa e, durante a primavera, eram comuns vasos de hortências espalhados pelos aposentos.
Um dia Heloísa partiu.
Heitor,sozinho e deprimido,acompanhou-lhe até à derradeira morada.Passou a visitar-lhe em tôdas as manhãs de domingo e quando setembro azulava-lhe o jardim,oferecia à sua amada as mais belas hortências.
A ausência da companhia transformou-lhe num sujeito calado,introspectivo...Seus dias ,agora,o encontravam feito um espectro sentado na varanda.O silêncio lhe abatia e a solidão da falta o fazia vago e distante no olhar.Buscava na linha do horizonte respostas às suas mais íntimas indagações.Violão e voz,emudeceram para sempre.Ressentidos de suas canções,os passantes penalizavam-se frente àquela figura solitária e abatida.Diante do carinho que sentiam pelo casal,mostravam-se sempre muito atenciosas e solidárias para com êle.As vizinhas vinham com frequência trazer-lhe "um agradinho", saber de como estava passando,se precisava de alguma coisa...
Na companhia de sua gatinha "Sibil" ,êle mostrava-se agradecido e mergulhava novamente no vazio em que transformara-se sua existência.
Manhã de julho...O inverno rigoroso aniquilara a vida das plantas.
Uma neblina espêssa estendia-se pela rua das Acácias.
Frio intenso.Pessoas muito bem agazalhadas serziam as calçadas.
Trêmulas,encolhidas em pesadas roupas de lã.
Na "casa verde",portas e janelas abertas dêsde muito cêdo.
A vizinha da casa ao lado,retorna da padaria.Estranha o cenário,percebe algo de errado por ali.
Chama por Heitor,toca a campainha...
Nenhuma resposta.
Apreensiva,adentra à casa...Há sobras de café numa xícara,migalhas de pão sobre a toalha xadrez, restos de uma fruta num  canto  da  mesa.
"Sibil", a gatinha, mia com insistência.
Um ruído choco vem da sala de estar.Num correr de olhos,a vizinha observa o disco de vinil,riscado,travado na agulha da vitrola.
Pensa em desliga-la.
Resiste,e chama em voz alta pelo dono da casa .
Ninguém responde.Decidida,vai adentrando ao quarto.
A cena à sua frente é chocante,e ao mesmo tempo enternecedora.
Heitor está imóvel sobre a cama.Esboça na expressão  da face,um ar de serenidade comum à quem parece estar feliz.
"Sibil" salta proximo à vitrola. A agulha destrava-se sobre os acordes da última canção que Heitor ouvira:

"Os sonhos mais lindos sonhei...De quimeras mil um castelo ergui...".
Pelo assoalho da sala em desalinho, na capa de um vinil "Carlos Galhardo" ostenta sua pose de galã ,atirado sobre o tapete.
Proximas à vitrola,em pleno inverno,misteriosamente, orvalhadas hortências azuis surgem espalhadas.
Clic no link para  ouvir:
https://www.youtube.com/watch?v=iYViO0SPO6I


Texto  reeditado: Preservados  os  comentários ao  texto anterior.

16/11/2011 04:41 - Chico Chicão
Este conto lembrou-me Campos do Jordão e suas hortências ao longo das avenidas e araucárias ao longo da serra.O amor é sempre bem vindo,é sempre alegria.Pena que um dia tudo acabe.Menos o amor.Ele continua nas hortências e nos seus contos maravilhosos que enternecem.Escreva mais,amigo.Obrigado Fique na paz!


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04/08/2010 19:35 - Marcia Telma
Joel, como me enterneceu o seu conto...Você soube retratar muito bem o cotidiano de um casal que se ama.E o amor deve sempre ser retratado entre flores e perfumes...


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25/03/2010 00:13 - Beatriz Cruz
Lindo e comovente seu conto,Joel.


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16/03/2010 17:44 - josé cláudio Cacá
Joel, meu amigo, estou sentindo falta de você aqui para repetir corriqueiramente essa dose de encantamento e emoção que seus lindos textos proporcionam. Que coisa linda! Tudo bem com você? Espero que volte breve. abração. Paz e bem.


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03/03/2010 23:07 - Malgaxe
Olha rapaz, eu achei linda esta história, há flores tao antigas em nossos caminhos, que por si só ja carregam o estigma de serem carregadas de poesia, no meu caso, hortencias, palmas e pequenas rosinhas cor de rosa, adoro elas. Parabens e obrigado pela emoção. Grande abraço.


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23/02/2010 06:46 - Layara
Nossa que lindo! Emocionei-me com a ternura e esse perfume de amor espalhado na tua escrita. Meu carinho


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21/02/2010 16:23 - Anita D Cambuim
Palmas para você. É só o que consigo lhe dizer. Abraço e palmas.


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20/02/2010 14:54 - Lisyt
Joel, Você como sempre, nos envolvendo de ternura e poesia, num conto suave, que acima de tudo, nos mostra a harmonia da vida.\Que Deus te proteja. Tenha um belo domingo!


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20/02/2010 00:38 - Maria Olimpia Alves de Melo
Também gosto de hortências.E de contos como esse onde impera a ternura e a certeza que o amor sobrrevive a morte.


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19/02/2010 22:36 - Helena da Rosa
Nossa, Joel!Não há como não emocionar-se com tuas linhas...São lindas demas, mxem com a alma da gente. È maravilhoso te ler. Parabéns, sempre. bjs helena


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18/02/2010 21:05 - CONCEIÇÃO GOMES
Belísimo seu conto. A isso eu chamo de amor verdadeiro.Gosto das hortencias e gostav muito de Carlos Galhardo, mas nada tenho dele.


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18/02/2010 17:29 - Menduina
Boa Tarde poeta, adorei seu texto, tenho lá..ALMA DE MINHA ALMA... ME DÊ A HONRA, BEIJOS


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18/02/2010 09:44 - Ruy Silva Barbosa
Um texto maravilhoso para o inicio de uma manhã sombria e chuvosa, faz muito tempo que não chove por aqui.E falar de Carlos Galhardo das hotencias e da coisa mais importante de nossas vidas que é nossa mãe.Simplesmente maravilhoso


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18/02/2010 07:43 - Rejane Chica
Chorar a essa hora da manhã aoler um texto deve fazer bem! Emocionante. E as coisas lembram o que minha mãe gostava, Galhardo... LINDO!abração,tudo de bom,chica


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18/02/2010 00:22 - Helena de Paula
olha eu aque de novo me emocionando com teus casos contos que se assemelham um pouco com o meu!!!beijos.



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17/02/2010 19:16 - Dante Marcucci
Mistérios que acontecem em contos tão enternecedores e bem contados. Parabens. Um abraço gaucho