Tranco de Infãncia
Se o fim do mundo fizesse alguém correr, para se safar, poderíamos dizer que aquele garoto, aquele dia, estava fugindo mesmo do fim do mundo. Ele correu por mais de 20 minutos, até tomar boa distância do local. Queria mesmo nunca ter visto aquela cena, mas o destino o queria envolvido, queria que ele aprendesse com tal experiência, por isso, ele, em tão tenra idade já computava essa mazela visual para sua futura lembrança. Droga de fatalidade. Em sua cabecinha ele não tinha como entender o porquê de uma pessoa inocente ter que viver momentos de horrores como aquele. Mas ele nem mesmo tinha intenção de confabular tal argumento. Ele queria apenas correr, e corria mesmo.
Ofegante e trêmulo, ele se sentou numa pedra, bem na curva da estrada vermelha de terra batida, olhou para a direção de onde viera e soltou um forte soluço. Com os olhos voltados para o céu, fez uma pergunta para si mesmo; _Porque essa merda aconteceu bem quando eu estava passando?
Com apenas 11 anos de idade e pesando 40 quilos, cursando o terceiro ano primário numa escola da roça, ele era um menino normal, de razoável inteligência. Não conheceu o pai e nunca morou com a mãe. Vivia com o avô, numa fazenda distante da cidade, uma minúscula cidade do interior mineiro, onde todo mundo conhecia todo mundo e as pessoas se tratavam pelo primeiro nome. Era uma comunidade humilde, simples e amiga.
Fazia apenas um ano e meio que ele e seu avô haviam se mudado para aquela região, mas ele já conhecia quase todo mundo do lugar. Quatro famílias moravam perto da fazenda. Tinha bons coleguinhas para irem juntos à escola, brincar e pescar, além de aproveitarem as distrações dos pais para nadarem escondidos, no rio que cortava aquelas terras. E foi exatamente envolvendo elementos de uma dessas famílias que o menino foi testemunha de uma brutal violência.
Antigamente os pais eram severos demais na intenção e tentativa de educar seus filhos. Alguns castigos aplicados não passavam de torturas e a coisa mais estranha é que a sociedade agia em acordo mudo com tais atos. Até filhos aleijados ou cicatrizados por corretivos paternos era comum naquela época. Foi assim que o menino se viu presente quando um pai severo dava um corretivo em sua filha. A mocinha tinha 16 anos e cuidava da casa, do pai e dos irmãos menores.
O ocorrido estava mexendo com a cabeça do pequeno, e mesmo a coisa não sendo diretamente com ele, foi um choque brutal para seu entendimento juvenil e imaturo. Suspiros fundos e soluços abafados estavam prestes a levá-lo à loucura, pois mesmo sem se dar conta, ele era um garoto por demais sentimental, envolvente e envolvido.
O garoto estava com seu estilingue, caçando pequenos pássaros na redondeza e ao sentir sede se encaminhou para o bicão que tinha na entrada de um túnel desativado que serviria para atalho das locomotivas de uma ferrovia por nome Estrada de Ferro Leopoldina (obra iniciada e nunca concluída). Assim que desceu um barranco para atingir o nível da água, ele ouviu choro de menina e gritos de macho adulto. Com seus ouvidos apurados o menino identificou o timbre e vibração aguda da agonia daquele choro e, pior ainda, o timbre de ódio na voz do homem gordo, que gritava coisas medonhas, enquanto espancava a filha, sua própria filha, e amiga do garoto.
A moça estava meio encurvada, segurando o tronco de uma árvore enquanto seu pai lhe aplicava chibatadas com um chicote de couro trançado. O sangue escorria das costas e pernas da moça e seu vestido, vermelho de florezinhas amarelas, estava rasgado nas alturas das coxas e cintura. A cena era mui forte e o menino, impetuoso por natureza, gritou com o homem e mandou a moça correr para que não morresse. Por um segundo, um segundo apenas, o silêncio se fez total e pesado na entrada daquele túnel.
Mas, o homem olhou para o garoto, com seus olhos flamejantes e parecia até que sua boca, sob enorme bigode preto, espumava. Parecia mesmo um louco em sua mais alta crise de demência. A moça correu e o menino, por instinto, apontou seu estilingue para aquele gordo torturador. Homem caminhou para o garoto, mas este parecia mesmo decidido e esticou ainda mais as borrachas de sua artesanal arma. Foi então que uma careta indecifrável, estampada no rosto do agressor, pode ser observada pelo garoto, que interpretou aquele trejeito como uma sorriso malévolo. O nosso pequeno herói quase se sentiu vitorioso em sua intervenção a favor da amiguinha e pretendia dizer algo quando o sujeito levou mão à cintura e sacou um revolver.
Por não saber como agir diante de tal reação, o menino preferiu, por instinto de sobrevivência, dar as costas e correr. Ele correu, correu muito, e foi assim que me lembro ter iniciado essa crônica.
(Pardon)