Marcial, Rei do Maracanã
O pensamento vagueia e uma notícia triste o afasta do presente. Sai de um hotel em 2018 e estaciona num meio-dia ensolarado de 2008 ou 2009. Meu pai está de carona comigo e estamos chegando ao Restaurante Milhão, às margens da BR-262, de volta de uma viagem a Belo Horizonte. Era que meu pai não abria mão do tradicional pit stop para comer empadinha e tomar um cafezinho no Milhão. Apeamos, como se dizia, e ele logo me pergunta, apontando para dentro do restaurante:
- Aquele lá é o dr. Marcial, não é?
Sim, era o Dr. Marcial. Ele caminhava pelo restaurante, conversando ora com um, ora com outro, inquieto, sem se sentar. Marcial de Mello Castro, além de ser o Dr. Marcial, tinha sido meu ídolo e de muitos torcedores de Flamengo, Corinthians e Atlético Mineiro. E, por último, goleiro, médico e diretor do Clube Atlético Pitanguiense, o alvirrubro da Sétima Vila do Ouro.
Marcial, quando nos viu chegar, vem imediatamente cumprimentar meu pai e passa a dar-lhe total atenção. Eu, que já gostava do Rei do Maracanã, naquele dia passei a gostar também do ser humano ali exposto, boa prosa e bom humor.
- E aí, Dininho?
Conversaram uma meia hora, e Marcial demonstrou muito carinho por ele. Falaram de tudo, gente conhecida, futebol, teatro, contaram piadas e riram um bocado. Eu fiquei meio à deriva, porque, se o conhecia, talvez nem se lembrasse mais de mim: ele se mudou para Pitangui em 1973 e só voltei a morar na minha terra natal em 85, quando ele estava retornando a Belo Horizonte. Naquele encontro, repetia-se o desencontro: eu vinha, ele ia. Como atleta, só uma vez me encontrei com meu ídolo, talvez em 1968, quando o CAP foi jogar em Pompéu, eu no banco, ele como chefe-honorário da “embaixada”, como diziam naquela época.
Fico escutando a prosa dos dois e de novo o pensamento escapole e se muda para a longínqua tarde de 13/12/1963, quando ele, goleiro do Flamengo, se tornou o Rei do Maracanã.
Lentamente capto o clima do estádio lotado e o ruído ensurdecedor da multidão. Assisti pela tevê. O maior estádio do mundo estava explodindo de gente. Naquela tarde de decisão, 194.000 espectadores, dos quais apenas 177.000 pagantes, foram ver um Fla-Flu decisivo. Ainda não tínhamos o Mineirão e os clássicos para nós eram os cariocas ou paulistas, conforme a região do estado.
Aí entra Marcial. O Fluminense, precisando vencer, ataca sem cessar, chuta na trave, balança o travessão. O Flamengo, com a vantagem do empate, é encurralado, e Marcial passa a defender de tudo. Mas o lance mais sensacional, que marcou Marcial para sempre como o Rei do Maracanã, foi quando Escurinho, ponta-esquerda do Fluminense, mineiro que tinha jogado pelo Villa Nova, chegou livre, frente a frente com o goleiro e, ao invés de embicar para furar as redes, tentou encobrir Marcial e se deu mal, com rima e tudo: o goleiro do Flamengo alcançou a bola e pelo menos metade do Maracanã vai à loucura.
O próprio Marcial comentava em entrevista sobre o gol que Escurinho não marcou:
- "Ele já comemorava quando mostrei a bola à torcida”
Nelson Rodrigues, tricolor roxo, escreveu para o jornal O Globo sobre a jogada que poderia ter dado o título ao Fluminense:
- Lembro-me de um momento, em que Marcial estava batido, irremediavelmente. O arco rubro-negro abria seus sete metros e quebrados. E que fez Escurinho? Enfiou a bola na caçapa? Consumou o “goal” de cambaxirra? Simplesmente, Escurinho levantou para Marcial. Deu a bola na bandeja como se fosse a cabeça de São João Batista... Escurinho teria de chutar rente à grama, ou alto, se quisesse, mas teria de chutar e nunca suspender a bola...”
E o autor de “Toda nudez será castigada” escolheu Marcial o “Personagem da Semana”.
Pois Marcial, mineiro de Tupaciguara, trocou o futebol profissional pela medicina, quando tinha menos de 30 anos. Em 1973 vai morar em Pitangui, onde já vivia e clinicava seu irmão Rui, também médico. Na Velha Serrana, Marcial se torna goleiro e diretor do Clube Atlético Pitanguiense, quando faz amizade com metade de Pitangui.
No último 2 de agosto, o grande goleiro, o ser humano e o médico nos deixaram de uma vez. Era a notícia triste que me fez passear no tempo. As ruas da saudade povoam-se de mais um ser querido. À Hilda, esposa, e filhos Alexandre, Marcelo, Rodrigo e Márcia, os nossos sentimentos. Podem ter a certeza de que ele está nas boas lembranças de muita gente em muitas partes do Brasil e do mundo.
O burburinho do estádio superlotado se calou, meu pai e Marcial também. Lentamente, volto a outubro de 2018 e aqui estou no computador, em um hotel de Ciudad del Este, Paraguai, escrevendo sobre o passado.