E você?
Não me obriguem a ser coerente.
O que eu quero é uma Helena, sem Tróia, sem gregos ou cavalos. Mas não é do que preciso, no meu caso cairia bem uma Amélia, a de verdade.
Sempre me cobraram na vida.
Quando criança: vai brincar e deixa de ouvir histórias de adultos.
Quando adulto: ser criança não dá mais.
Amei a minha infância e para ela, com o perdão do leitor, recuo nessa crônica.
Corria pelo quintal verde que tinha em casa.
Atormentava as formigas com um balde “dágua”.
“Olha a inundação!”
E lá vinha o balde, e a água, afogando a trilha.
Era engraçado ver como elas se uniam umas às outras, agarradas, formando verdadeiras bóias. Giravam naquele redemoinho e eu podia sentir a sua alegria ao serem salvas por uma folha ou pedaço de grama. Escutava até mesmo os gritos: êbaaaa!
Era um rico universo em miniatura.
Certa vez enlouqueci um pintinho. Não é o que a sua mente está pensando. Era um legítimo galináceo que me foi dado para torturar. Transformou-se em cavalo dos meus soldados de plástico ou era um monstro que deveria ser atacado pelos meus canhões. Ficava ele tonto e atormentado. Eu confesso que exagerei ao utilizá-lo como alvo de minhas setas de plástico, que vinham com aquela borracha na ponta para grudar em portas, quando disparadas pela arma. Tive a idéia – brilhante – de remover a borracha.
Corria pelo quintal, com capacete de soldado, espada na cintura, arma em punho, no encalço do dragão em que se transformara o pintinho. Ele ficou na mira, encurralado no ângulo do muro, sem saída, acuado e temeroso. Caprichei na pontaria. Eu não erraria. Naquele momento aconteceu o inusitado. O alvo dobrou-se de joelhos e com as asas cobriu a cabeça. Eu não sabia que ele podia fazer aquilo. Já estava maior, era quase um galinho acostumado a muitas aventuras.
Eu fiquei parado e observando. Não tive coragem de disparar. Ele ali, em uma posição quase humana e eu nos meus trajes de soldado rebelde. Poupei sua vida e fiquei um dia inteiro pensando no ocorrido. Se mesmo uma criatura inferior é capaz de rezar para um Deus – acreditava – por que não eu?
No final daquele dia meu pai levou-o para a chácara de um amigo. Semanas depois soube que o meu antigo companheiro de batalhas virara um caldo. Uma estranha sensação ocorreu. Eu não senti pela sua partida. Não senti pela sua morte. Desde aquele dia, eu nunca mais deixei de falar para um Deus, um ser supremo, bondoso e atencioso que não sei se me escuta, mas em cuja existência eu preciso acreditar...