RELIGIÃO E CIÊNCIA. 16

O embate entre a fronteira do saber e a transcendência do homem é profuso; benévolo e angustiante, temeroso e temerário, corajoso e fraco, sereno e ansioso, turbilhão de emoções vagueando pelas épocas todas, tendo no centro do cenário o homem, buscando através da religião a eternização de seu maior bem, a vida, enquanto a ciência de sua pesquisa altaneira e um tanto pretensiosa, ironiza de certa forma essas esperanças defendidas pelos credos.

Nessa testilha, nesse confronto antagônico dos opostos, não fica difícil divisar, enxergar, a aproximação do pensamento na sincronia da causação comum da existência da primeira grande força, a suprema energia.

Se em Sidarta Gautama, o Buda, podemos ver e viver sua grande iluminação, o elo causal onde não mais existem sofrimento, doença e morte, e que dorme em nosso interior o Deus de cada um, isto através do “Karma” das individualidades no plano espiritual, temos em Thomas Huxley, naturalista, defensor ardente do transformismo, dedicando-se a mostrar as afinidades entre o homem e o macaco, cientista de nota, o princípio do “Karma” material que liga a todos na cadeia da sucessão, princípio da ancestralidade, na certeza de que todos somos resultado do primeiro ser planetário que se organizou, e cada um de nós, fecho familiar da última geração, conseqüência da sua árvore genealógica na árvore única da humanidade.

A convergência está indissociável da divergência embora se estabeleça aparentemente a contradição!

Mas a corrente causal, sob qualquer ótica, se revigora na maior mensagem dos personagens máximos que por aqui transitaram.

O Cristo deixou perene “amar o próximo como a ti mesmo”. Estamos diante da unidade da cadeia causal. O que é amar (força que impulsiona e move toda a natureza) ao próximo como a ti mesmo, que não estarem ligados todos por força única que se propaga e se expande?

Confúcio de sua elegia à virtude e pela disciplinação ensinava: “A grande doutrina é aquela que nos ensina a necessidade de mostrar uma virtude transcendental. Todas as coisas, sejam materiais ou imateriais, têm raízes e ramos, que são as causas e os consequentes efeitos de tudo”. Grifos nossos.

Ghandi, afirmando que “eu não tenho mensagem, minha mensagem é minha vida”, mais não fazia que unir a todos na pacificação, já que sua vida, sua jornada, foi mensagem de paz para a comunhão de vontades através da não-violência, também um elo causal envolvendo a todos.

Assim, a ancestralidade de Huxley, física, material, que tece a teia da unicidade, onde todos somos frutos de uma mesma raiz, de uma mesma árvore, está virtualmente ligada ao lado nobre dessa vida de massa corporal, cujo vértice é o pensamento (alma, transcendência) que em desafio ao agnosticismo, à ciência, ninguém explica como se forma, nem a vida, não indo além do espermatozóide fecundando o óvulo, dois gametas também vivos com evidente causa eficiente antecedente, pois nada surge do nada.

Como Deus, o surgimento da vida, é segredo inviolável e inacessível à inteligência. Estaria em ver seu reino, o reino de Deus e sua face, o mistério da vida, gênese da vida eterna, fecho e lacre permanentes e insondáveis destinados aos eleitos?

Uma interminável rede de neurônios, explica a ciência, gera a energia que formaria (o verbo está no condicional) o pensamento. Só isso?

Se a vida é só essa terrena passagem, efêmera e fugaz, ela é uma piada, pequena, irrazoável, tola, um ser e existir em preto e branco, descolorido, sem arte ou enfeites, com felicidades que sempre se terminam na dor e no sofrimento.

Muitas mentes privilegiadas elegem tais conceitos como claros e intransponíveis. Shopenhauer, filósofo alemão, afirma: “As alegrias da vida são como esmolas colocadas no prato do mendigo. Com elas consegue sobreviver para continuar na miséria”. Essa visão pessimista é dura e cruel, mas não é hipócrita.

Nas palavras do Padre Ratzinger, Papa Bento XVI,hoje Papa Emérito, “o invisível é mais real do que o visível, porque nosso coração não foi feito para o invisível”. As coisas palpáveis são ilusões. Tive um irmão que não conheci. Primeiro filho de meus pais, na época único, faleceu aos dois anos vítima de pneumonia quando ainda inexistia antibióticos.

Tal fato abalou seriamente o psiquismo de minha mãe e de meu pai, que mais forte e dedicadíssimo ao trabalho, resistiu com mais força. Quando ele se foi, minha prima mais velha, com quem ele tinha particular proteção, posto que ficou sem o pai muito cedo, notável professora de línguas, me disse que tinha uma frase escrita por meu pai para colocar no túmulo de meu irmão e me perguntou como proceder, já que ele, meu pai, dava a incumbência para ela ordenar fazer e após dava ordem contrária; isto por muitos anos. Perguntou-me como proceder e me mostrou a frase. Li uma só vez e está gravada com as letras da emoção e da verdade em meu cérebro: “Depois de tua morte compreendi que a vida é uma ilusão que mata”.

Não estava meu pai construindo textos ou discursos, atividades em que era reconhecido como mestre invulgar, da língua e do direito, estava com sua emoção sangrando pela dor espontânea, perda de um filho, a mostrar que habitamos “um vale de lágrimas”, as lágrimas que felizmente não vi e que fizeram minha mãe trancar-se para o mundo, nas suas aflições com os seus outros filhos supervenientes ao fato, eu e minha irmã.

Uma pessoa que considero um segundo pai, a quem devo parte de minha iniciação profissional, conversando comigo depois da já ausência de meu pai, de quem era grande amigo, me disse: “o Panza era estranho, certa vez me confidenciou que amava muitíssimo seus filhos vivos, mas amava mais seu filho morto”. Embora uma gigantesca inteligência, um dos maiores oradores que o Estado do Rio conheceu, nosso amigo, meu e de meu pai, não pode compreender o significado da dor da ausência; por um simples motivo, não a conhecia.

Esse o mar agitado de emoções que leva à pungente sofrimento, inimaginável, o mesmo que deixa cientistas racionais e frios na proposição da dúvida, que esconde a confissão velada em pretender algo mais. Por isso o citado Thomas Huxley, assentou: “Não confirmo nem desminto a imortalidade do ser humano: não vejo razão para acreditar, mas não disponho de meios para refutar.”

Kant do alto de sua “crítica da razão pura” sucumbe à dúvida e afirma não aceitar a eternidade, mas não poder recusar a existência de uma “Primeira causa”; reconhece a grandeza da “Primeira causa” grafando-a com letra maiúscula.

Se nada sabemos sobre a vida, nem mesmo como surge, como nos atrevemos a pretender explicar a morte. Calar quando não se pode explicar, cai melhor do que negar e por a dúvida a assaltar, a desservir a gnose, o conhecimento.

Para Khali Gibran, harmonizando a dúvida, “é somente quando beberdes do rio do silêncio que podereis realmente cantar”, “e somente quando atingirdes o cume da montanha que começareis a subir, pois o que é morrer, senão expor-se, desnudo, aos ventos e dissolver-se no sol?”

Edward O. Wilson, biólogo americano considerado um dos maiores cientistas vivos do mundo, em “A Unidade do Conhecimento – Consiliência”, extrai da excelência de suas reflexões, nesta obra máxima que tem por objeto defender a unidade fundamental do conhecimento, a necessidade de uma busca da “consiliência”, neologismo seu que define : “a prova de que tudo no mundo está organizado por um pequeno número de leis naturais fundamentais que compreendem os princípios subjacentes a todos os ramos do saber.”

É nesse repositório de sabedoria, que considera Wilson, pioneiro da sociobiologia e da biodiversidade: “O medo, nas palavras do poeta romano Lucrécio, “foi a primeira coisa na terra a gerar deuses”. A existência do sobrenatural, se aceita, atesta a realidade daquele outro mundo tão desesperadamente desejado. Qualquer coisa servirá, contanto que dê sentido ao indivíduo e de algum modo estenda à eternidade aquela breve passagem da mente e espírito lamentada por Santo Agostinho como o curto dia do tempo”. E com sua alta penetração aduz Wilson, obra citada: “A mais perigosa das devoções, na minha opinião, é a endêmica ao cristianismo: não nasci para este mundo. Com uma segunda vida aguardando, o sofrimento pode ser suportado – especialmente em outras pessoas”. Grifos nossos.

A propósito descreve a aposta de Pascal: “Caso exista uma vida após a morte, raciocinou o filósofo do século XVII, o fiel terá um bilhete para o paraíso e aproveitará o melhor de ambos os mundos. Se eu perdesse, escreveu Pascal, teria perdido pouco, se ganhasse teria ganho a vida eterna”.

Nesse limiar fronteiriço entre o crer ou não crer, nas pegadas de Shakespeare em seu “não ouso crer nem descrer de nada”, desponta o caráter, que como refere Wilson, “o verdadeiro caráter brota de uma fonte mais profunda do que a religião. É a interiorização dos princípios morais de uma sociedade, acrescentados daqueles princípios pessoalmente escolhidos pelo indivíduo, fortes o suficiente para resistirem às provações da solidão e das adversidades.” Grifos nossos.

É esse caráter que encontra uníssono em todos os credos que se inclinam para o bem que pacifica as consciências para a roda das existências todas, na crença, na descrença ou na dúvida. O caráter que vai além de seus interesses e bebe na fonte das necessidades do próximo, seu irmão em todos os sentidos na ancestralidade do Karma material e espiritual.

É por essa via de esclarecimento, da “CIÊNCIA QUE NÃO EXCLUI DEUS”, conforme entrevista dada à Revista “Veja”, páginas amarelas, de 21/01/07, concedida por Francis Collins, responsável pelo espetacular feito da ciência moderna, o mapeamento do DNA, biólogo americano Diretor do Projeto Genoma bancado pelo governo americano, entrevista que motivou o presente artigo, que transcrevo algumas de suas ponderações após questionado:

“No livro “A Linguagem de Deus” o senhor conta que era um ateu insolente e depois se converteu ao catolicismo. O que o fez mudar suas convicções? Que questões são estas para as quais não encontramos respostas? Falo de questões filosóficas que transcendem a ciência, que fazem parte da existência humana. Os cientistas que se dizem ateus têm uma visão empobrecida sobre perguntas que todos nós, seres humanos, nos fazemos todos os dias. O que acontece depois da morte? Qual é o motivo de eu estar aqui? Não é certo negar aos seres humanos o direito de acreditar que a vida não é um simples episódio da natureza, explicado cientificamente e sem um sentido maior”. Grifos nossos.

Esse direito, de sentir-se algo maior que a singela caminhada corpórea, ninguém nem ciência alguma pode subtrair do ser humano.

Celso Felício Panza.

Publicado na Revista "FORUM."

Celso Panza
Enviado por Celso Panza em 27/10/2018
Reeditado em 14/01/2019
Código do texto: T6487558
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