A LÍNGUA, AS INVENÇÕES E A OPINIÃO: CRÔNICA DE UMA AULA E DE UM PROFESSOR INACABADOS
Estas ultimas semanas tem sido, para mim, de grandes surpresas, algumas assustadoras, outras que alimentam minha esperança e a fé de que a humanidade ainda tem jeito.
Semana passada, lecionando a disciplina de Libras, chamei a atenção de uma das turma para as possibilidades que a língua nos dá de inventar coisas. O objetivo era apresentar e discutir como a Surdez é inventada nas diferentes esferas discursivas e, para provocar a turma, escrevi na lousa: “a homossexualidade é uma invenção.” - posteriormente apagaria a palavra homossexualidade e colocaria mulher, e por fim surdez. A discussão tomou proporções catastróficas. Quase não consigo trocar para a segunda palavra e a fiz, a muito custo, porém não concluímos a aula. Cada cabeça uma sentença, cada sentença um “essa é a minha opinião!”.
Na aula de ontem retomei alguns conceitos levantados naquela aula. Comecei falando que precisamos suspender as opiniões para questionar qual o tipo de verdade ela traz, em que está fundamentada essa verdade. Eu disse:
“Vejam, com base na opinião de alguém, a língua foi banida da educação e das escolas de surdos, por quase 100 anos, resultado do congresso ocorrido em setembro 1880. Durante esse tempo não houve mais formação de surdos em nível superior, a comunidade surda, em relação à educação, de uma forma geral, foi prejudicada e até hoje encontramos a maioria dos surdos fora da educação, trabalhando como fundo de caixa nos supermercados das cidades e na luta contínua por uma educação de qualidade.
Por isso o setembro tem um significado muito grande da comunidade surda, foi também neste mês, no dia 26, de 1857, que a primeira instituição pública de educação de surdos, o INES, foi fundada, daí a comunidade surda elege o setembro e a cor azul (setembro azul) como referência aos marcos históricos da comunidade surda.
Sobre a cor azul:
Foi com base na opinião de que na Alemanha só poderia viver os “alemães de verdade”, os negros, deficientes, judeus, Testemunhas de Jeová e outros, precisavam ser expurgados. Numa ‘faxina geral’. As pessoas surdas foram marcados com uma faixa azul, amarrada ao braço e posteriormente assassinadas. Além da homenagem a todos os que morreram neste período, a cor representa, também, o Orgulho Surdo.
E esta semana me vi (continuo minha fala) como ‘bandido de vermelho’. Porque um certo candidato aí disse no discurso de domingo que fará uma ‘faxina muito mais ampla’ onde os ‘marginais de vermelho serão banidos de nossa pátria’. Na opinião desse sujeito, deve permanecer no Brasil apenas os ‘verdadeiros brasileiros’. Ele deixa claro que esses ‘marginais de vermelho’ são aqueles que se opõem às suas ideias e discurso e, portanto, em muitos casos, forçados a votar no candidato concorrente mesmo alimentando um sentimento anti-petismo disseminado pela mídia. Como, em parte, é o meu caso.
Ouvindo essas coisas, olho para minha esposa e meus filhos e choro por dentro. Não externalizo o choro porque - e aí o pessoal tem razão, existe uma ideologia de gênero e fui criado nela...”
Neste exato momento minha aula é interrompida por uma aluna do curso de direito, da mesma instituição. Ela bate à porta e, com a porta entreaberta, coloca a cabeça para dentro da sala.... da mesma forma que fazem(os) quando entram(os) no banheiro e não verificamos se tem ou não papel higiênico, depois de realizado o trabalho, vê que não tem, entreabre a porta, coloca a cabeça para fora e pede ‘socorro’... e diz:
- “Professor, com licença, boa noite, posso dar um recado para a turma?”.
- “Claro! - respondi - Entre.
Em sua fala, se identificou como aluna do curso de direito e que estava cansada e sabia que todas da sala também estavam, não é nada fácil, trabalhar o dia inteiro e ainda estudar à noite. Disse o nome (perdoem-me, mas não me lembro, estava querendo saber onde ela queria chegar com tudo aquilo, e acabei não dando atenção ao seu nome e o de sua mãe), qual período cursava, falou que sua mãe é uma religiosa muito conhecida no município, (e eu pensando, onde ela quer chegar? Qual recado vai dar?) e por fim disse: “sou lésbica e quero saber se vocês podem me dar um abraço”.
Muitas alunas, e eu inclusive, a abraçamos, ela agradeceu e saiu.
Fiquei atônito.
“Professor, foi você que combinou isso? Faz parte da sua aula?”
Eu, chorando por dentro (ainda sem saber o porquê) disse que não e foi uma coincidência incrível. E não mesmo. Não sei quem é a pessoa, nem o que a motivou fazer tal coisa. “Talvez ela volta e explica, deve ser um tipo de experimento social, vi um vídeo de um rapaz que foi expulso de casa, porque ele era homossexual, e esva na rua com um cartaz pedindo um abraço” - disse uma aluna. “Depois vocês me contam o que foi isso” - disse para retomar minha fala.
“Falava sobre identidade de gênero. Então, quando ouvi aquele discurso chorei por dentro, não externalizei porque um homem chorar demonstra fraqueza, chorar é sinônimo de fraqueza, isso é coisa de mulher! - um alvoroço se instaura.
- “Como assim professor?”.
- “Sério que você disse isso?”.
“Calma. Vão me dizer que vocês nunca ouviram isso? Quando um menino chora o que dizem para ele? - ‘homem não chora! Tá parecendo uma menina!’ e outras variações. - algumas alunas trouxeram outros exemplos de que ouviam, neste mesmo contexto. - então - perguntei - isso não é ideologia de gênero?
Notem, eu me vi como um “bandido de vermelho” que, por não concordar e me opor ao discurso do dito candidato, tenho/terei apenas dois destinos, não só eu, mas eu e minha família: ou ir para fora do país ou ‘para a cadeia’”.
Continuei a aula questionando sobre o que é cultura. Pedi para que uma das alunas lesse um parágrafo de um dos textos que trabalharemos nas próximas aulas sobre o conceito dado pela autora sobre o que é cultura. ‘cultura é a estrutura daquilo que é chamado de hegemonia, que molda os sujeitos humanos às necessidades de um tipo de sociedade politicamente organizada[...]’. Hegemonia vem do grego hegemon, que significa líder, guia ou quem dita as regras. Encerro a aula dizendo:
“Nossas opiniões são pautadas na cultura em que somos criados e esta é a estrutura de uma hegemonia. Qual é o líder e quais são as regras que regem sua opinião?”
Eu escolhi o amor. mas ele também não é um princípio muito sólido, pois em nome do amor cristão muitas atrocidades foram realizadas, a história não nos deixa esquecer, a não ser que você siga o líder que diz: “deixe a história pra lá!”.
Então escolho os livros e a democracia, para poder sempre ter condições de me opor. E você dirá, encerrando o assunto: ‘essa é sua opinião’. Então, que seja.