Falando do abandono
Abandono é a mais estraçalhante forma de dizer não-te-quero-mais. Dói mais do que refogar a alma em óleo fervente. Abandonar alguém ou algo que nos foi importante certo dia é como escarrar todo nosso desprezo de uma vez só, mostrando pra nós mesmos que nada mais vale, nada mais representa, nada mais traduz. Abandonamos às vezes num ímpeto explosivo, sem muito entendimento dos porquês, e depois encarnamos uma culpa do tamanho dos céus, ficando à mercê desse gosto atroz pelo resto da vida. Ou abandonamos com a mesma relevância com que esmagamos uma barata e fica tudo de boa. Todos nós fazemos uso do abandono ao longo dos passos que damos. Têm situações em que não nos damos conta disso. Abandonamos com o incauto pretexto do esquecimento, simplesmente deletando sem maiores cerimônias algo que já foi o centro das nossas intenções e que agora, vai saber o porquê, perdeu seu encanto, simplesmente deixou de respirar e de nada mais nos serve. Esse descarte solene que fazemos de certos tesouros com prazo vencido é frugal na rotina cotidiana. Se nos dermos conta de proceder uma varredura nos rastros que deixamos, certamente nos depararemos com coisas e gentes que mantínhamos na mais alta cotação e que, de repente, se desvalorizaram abaixo do nível do chão. Então o nosso piloto automático os abandonará sem pensar duas vezes. Esse abandono poderá ocorrer numa lata de lixo, real ou metafórica. Nos livrarmos desses encostos incômodos vai aliviar o coração do peso intruso que a toda hora berraria "estou aqui, estou aqui, estou aqui!". Assim vamos nos purgar do tumor latejante, da pedra-no-sapato farpada, daquela droga que só nos fazia mal. Abandonar é um jeito de extirparmos certos nódulos malignos que insistiam em caminhar junto com a gente. E que só os deixando no seu devido lugar é que abraçaremos a paz pra prosseguir. Abandonar é, portanto, uma bênção pródiga e salutar que incluímos nos nossos protocolos e fazemos valer quando bem entendermos. Sorte nossa.