O grito de guerra da maçaneta
De repente a maçaneta da porta rompe a quietude, o sossego,
a dor sem trégua da ausência.
E dá seu grito de guerra.
Quem estava atolado na espera sem descanso, sorri aliviado, rendido,
absorvido de toda dor.
O coração desanda a saltitar, a voar, a voltar a bater.
- Ela voltou...
A maçaneta, que parecia nunca mais dar sinal de vida,
diz pra angústia que tanto chicoteava: tenha calma, viu?
A mesma calma que parecia que tinha se mandado de vez.
Tudo indicava que o mundo a tragara nos confins da escuridão e nunca mais a traria de volta.
- Ele voltou, voltou, será mesmo?...
Só a maçaneta poderia fazer o sangue não empacar no meio das
veias, só ela tinha a poção mágica para cutucar a alma no seu néctar maior.
- Voltou? Sei não, sei não...
O berro alucinado da maçaneta revira o mundo do avesso,
dispersando aqueles pensamentos maus, rebarbados, atrozes.
Só ela tinha o alvará pra amordaçar o medo que ancorara naquele
pai, naquela mãe, naquele irmão, naquela vó.
Menos naquele cão.
Porque somente os cães desprezam o canto das maçanetas,
apenas eles pouco se importam com sua voz.
Porque os cães vêm ao mundo munidos de maçaneta própria,
invisível, que sabe quando ele entrou, quando ela chegou,
quando eles aportaram de volta à casca.
Os cães sentem maçanetas como gélidos grãos de areia,
ou nuvens do céu, ou peixes do rio.
São coisas que vêm e vão sem cumprimentar com a cabeça,
sem deixar seu cheiro impregnar o ar.
Andam sem deixar rastro por onde passaram.
Se pudessem, os cães mandariam todas maçanetas para
o diabo, pois nada dela esperam além do eterno silêncio.
- Graças a Deus que voltou!...
Pra quem Deus não passava de mísero penduricalho, entrando e saindo de cena sem balbuciar uma palavra que fosse, naquela hora não tinha outro pra evocar.
Aquele "graças a Deus" trazia em si uma enxurrada de alívios,
o fim da tormenta, o ponto final na solidão.
Uma solidão farta, poderosa, onipresente.
Tão onipresente como Aquele que, rendido,
trazia de volta ao seu chão.
Pra nunca mais arredar pé dali.