Memórias de um faroleiro VI

Os dias se passaram lentamente, as noites se arrastaram vagarosamente por muitos anos, mas nunca foram iguais. A solidão por vezes cortava a pele como o vento gelado e atingia os ossos como espada afiada, mas as memórias que buscava no mais íntimo caderno de recordações eram como bálsamo curativo, eram como cataplasma de curandeiro, eram o fogo tímido da fogueira que crepitava dentro do peito e mantinha viva a alegria de viver.
Há mais de quarenta anos como faroleiro, desde o alistamento na marinha, ele só conhecia esse ofício e por ele ia morrendo para a vida mundana. As pessoas que ele amava, partiram ou não puderam esperá-lo para as "folgas programadas" mas ainda assim, estavam próximas porque as tinha guardadas no silêncio glacial que imperava no farol.
Quando em terra firme, vez por outra, via Madalena. A mulher que ainda povoava os seus sonhos. Ela fazia de conta não vê-lo, em respeito ao companheiro ou a algum filho que a acompanhava, mas sentia um fio de alegria pois estava certo que ela ainda o amava.
O carinho pela mãe já idosa, cuidada por uma afilhada dela, que ele sempre agraciava com um presente por pura gratidão. Único filho, pelo ofício que a orgulhava, não podia acompanhá-la nos seus dias derradeiros. Ela sempre lhe sorria e perguntava se tinha voltado da escola... lembrava-o do jantar no fogão. O estágio avançado da doença à poupava da dor provocada pela ausência prolongada dele.
E assim o velho marinheiro cruzava o oceano da sua vida. O olhar perdido no horizonte confortava o seu coração, pois ele sabia que a qualquer instante apareceria uma embarcação e a paisagem não seria a mesma... Logo estaria a imaginar histórias para registrá-las num pequeno caderno que um dia, quiçá, publicaria num livro com noite de autógrafos e coquetel de lançamento. Planos para quando estivesse reformado, morando na Prainha bem em frente ao Catamarã da Luzia, onde saborearia uma mariscada na companhia de Madá, a morena que ainda seria dele, como foi, pela jogadora de búzios da feirinha, muitas vezes profetizado.

Cláudia Machado
Enviado por Cláudia Machado em 20/10/2018
Reeditado em 01/03/2022
Código do texto: T6481053
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