O voo

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Faz doze minutos que estamos no ar. A previsão é de quarenta minutos de vôo até a primeira escala. Aqui em cima, sem o trânsito e o engarrafamento louco das ruas apertadas das metrópoles, acho que chegaremos sem atraso! Dúvidas, medo, angústia, observações – ainda estou na poltrona de referência 7C... Resolvo escrever. Agora sim! Poltrona 7A – janela. A aeromoça acaba de passar coçando a orelha. Nunca tinha visto uma aeromoça num momento tão íntimo. Afinal, não é todos os dias que esbarramos com uma aeromoça, ainda mais coçando a orelha! Acompanho-a até a cabine do piloto pra não perder nenhum detalhe dessa cena inusitada.

As luzes internas da aeronave estão apagadas. Tateando as linhas da minha agenda, sem a noção exata do que escrevo, sinto as palavras fluírem sem que as veja claramente. Acendo a luz interna localizada junto ao teto, mas as leis da Física me fazem fechá-la. Prefiro a beleza escura lá fora, com lépidos espasmos de luz, aos caprichos visuais de ver aquilo que escrevo. Far-me-ei cego por instantes para que brilhem de mim, nessa bela noite de lua minguante, as impressões deste noviço viajante.

Lá fora, nuvens aparentemente brancas, outras acinzentadas, formam um imenso tapete que se confunde ora com copas cinzentas de árvores seculares ora com fumaças gigantescas de um incêndio dantesco. Tudo gera frenesi. O dualismo entre a visão do mar de nuvens e a verossimilhança com o pavor de imensas fumaças, excitam-me. Tenho ímpetos de caminhar sobre esse mar aéreo, mas também sou um homem de pouca fé! A sensação de voar por sobre as nuvens dá um ar de grandeza. Sinto-me um deus, um Ícaro moderno, que não cai, talvez em função de ser noite.

Estamos sobrevoando entre dois imensos mundos: um que, acima de nós, talvez seja a morada de um Deus onisciente, onipresente e justo; abaixo, um mundo de deuses fúteis venerados por seguidores perdidos na própria ignorância. Somos tão pequeninos aqui dentro. As pessoas estão silenciosas. Algumas aflitas, quem sabe. O que se passa na mente de cada um dos tripulantes? Será que todos se sentem pequenos aqui?

Sobrevoamos pequenos focos de luz que se destacam como ilhas no imenso breu da madrugada sombria que avança. Há sucessões desses pequenos blocos de luz, formando arenas de um grande circo, de verdadeiros picadeiros de shows da vida humana, pois de onde estou, apenas imagino o palco de cada um deles. Imaginar que de onde parte essa luz há tanta dor, tanta desigualdade e tanta gente miserável causa arrepios! Tanta beleza há nessa macrovisão das grandes cidades. Quanta dor há, entretanto, no caos da microscopia caótica da celeuma social.

Outro bloco de nuvens. Agora, nada mais vejo além da turbina que me encara estática, bem do meu lado esquerdo... Essa luz vermelha piscando! O piloto manobra a aeronave e uma imensa área, de luzes brancas e alaranjadas surge... Sobrevoamos agora, nessa viagem silenciosa e reflexiva, um outro circo onde, certamente, outras histórias de vida, noutros palcos, coexistem nesse imenso teatro universal da vida humana.

Novamente me vem a idéia de grandeza. Não aquela noção puramente matemática de como as coisas são mensuradas em função de um referencial, mas algo muito além disso. Uma noção de sentir-se frágil, talvez impotente, diante de algumas situações da vida: da miséria, da desigualdade social, da ingerência pública, da inversão dos valores morais. Acho que nem todos os passageiros estão aflitos aqui em cima. Talvez a rotina de vôos endureça o coração dos homens e esses momentos de introspecção deixam de existir com o tempo.

Parece que aterrissaremos. É, estamos descendo, sim. Engraçado. Ainda não ouvi o fraseado que me persegue sempre que penso em voar. Até agora não ouvi nada de “senhoras e senhores, apertem os cintos...” Devem ter olvidado esse aspecto histórico tão importante da aviação brasileira. Deixe-me mudar de poltrona. Sentei-me junto à janela porque o lugar estava vazio, mas preciso retornar ao meu lugar de origem antes que a aeromoça que coça a orelha volte! Sei que não levarei uma bronca por isso, mas receio sorrir pra ela e ser tachado de passageiro impertinente no exato instante da aterrissagem.

Espaço aéreo brasileiro, em 02 de abril de 2002.

Do meu livro 'Crônicas e mais um conto'.