PACEM IN TERRIS. JOÃO XXIII.

2ª PARTE

RELAÇÕES ENTRE OS SERES HUMANOS E OS PODERES PÚBLICOS

NO SEIO DAS COMUNIDADES POLÍTICAS

Necessidade da autoridade e sua origem divina

46. A sociedade humana não estará bem constituída nem será fecunda a não ser que lhe presida uma autoridade legítima que salvaguarde as instituições e dedique o necessário trabalho e esforço ao bem comum. Esta autoridade vem de Deus, como ensina são Paulo: "não há poder algum a não ser proveniente de Deus" (Rm 13, 1-6). A esta sentença do Apóstolo faz eco a explanação de são João Crisóstomo: "Que dizes? Todo governante é constituído por Deus? Não, não afirmo isso. Não trato agora de cada governante em particular mas do governo como tal. Afirmo ser disposição da sabedoria divina que haja autoridade, que alguns governem outros obedeçam e que não se deixe tudo ao acaso ou à temeridade humana".[21] Com efeito, Deus criou os homens sociais por natureza e, já que sociedade alguma pode "subsistir sem um chefe que, com o mesmo impulso eficaz, encaminhe todos para o fim comum, conclui-se que a comunidade humana tem necessidade de uma autoridade que a governe. Esta, assim como a sociedade, se origina da natureza, e por isso mesmo, vem de Deus".[22]

47. A autoridade não é força incontrolável, é sim faculdade de mandar segundo a sã razão. A sua capacidade de obrigar deriva, portanto, da ordem moral, a qual tem a Deus como princípio e fim. Razão pela qual adverte o nosso predecessor Pio XII, de feliz memória: "A ordem absoluta dos seres e o próprio fim do homem (SER LIVRE, sujeito de deveres e de direitos invioláveis, origem e fim da sociedade humana) comportam também o Estado como comunidade necessária e investida de autoridade, sem a qual não poderia existir nem medrar... Segundo a reta razão e, principalmente segundo a fé cristã, essa ordem de coisas só pode ter seu princípio num Deus pessoal, criador de todos. Por isso, a dignidade da autoridade política tem sua origem na participação da autoridade do próprio Deus".[23]

Força proveniente da ordem moral

48. A autoridade que se baseasse exclusiva ou principalmente na ameaça ou no temor de penas ou na promessa e solicitação de recompensa, não moveria eficazmente os seres humanos à realização do bem comum. Se por acaso o conseguisse, isso repugnaria à dignidade de seres dotados de razão e de liberdade. A autoridade é sobretudo uma força moral. Deve, pois, apelar à consciência do cidadão, isto é, ao dever de prontificar-se em contribuir para o bem comum. Sendo, porém, todos os homens iguais em dignidade natural, ninguém pode obrigar a outrem interiormente, porque isso é prerrogativa exclusiva de Deus, que perscruta e julga as atitudes íntimas.

49. A autoridade humana pode obrigar moralmente só estando em relação intrínseca com a autoridade de Deus e é participação dela. [24]

50. Desta maneira fica salvaguardada também a dignidade pessoal dos cidadãos. Obediência aos poderes públicos não é sujeição de homem a homem, é sim, no seu verdadeiro significado, homenagem prestada a Deus, sábio criador de todas as coisas, o qual dispôs que as relações de convivência se adaptem à ordem por ele estabelecida. Pelo fato de prestarmos a devida reverência a Deus, não nos humilhamos, mas nos elevamos e enobrecemos, porque, "servir a Deus é reinar".[25]

51. Já que a autoridade é exigência da ordem moral e promana de Deus, caso os governantes legislarem ou prescreverem algo contra essa ordem e, portanto, contra a vontade de Deus, essas leis e essas prescrições não podem obrigar a consciência dos cidadãos. "É preciso obedecer antes a Deus que aos homens" (At 5, 29). Neste caso, a própria autoridade deixa de existir, degenerando em abuso do poder; segundo a doutrina de Santo Tomás de Aquino: "A lei humana tem valor de lei enquanto está de acordo com a reta razão: derivando, portanto, da lei eterna. Se, porém, contradiz à razão, chama-se lei iníqua e, como tal, não tem valor de lei, mas é um ato de violência".[26]

52. Pelo fato, porém, de a autoridade provir de Deus, de nenhum modo se conclui que os homens não tenham faculdade de eleger os próprios governantes, de determinar a forma de governo e o métodos e a alçada dos poderes públicos. Segue-se daí que a doutrina por nós exposta é compatível com qualquer regime genuinamente democrático.[27]

A atuação do bem comum constitui a razão de ser dos poderes públicos

53. Todo o cidadão e todos os grupos intermediários devem contribuir para o bem comum. Disto se segue, antes de mais nada, que devem ajustar os próprios interesses às necessidades dos outros, empregando bens e serviços na direção indicada pelos governantes, dentro das normas da justiça e na devida forma e limites de competência. Quer isso dizer que os respectivos atos da autoridade civil não só devem ser formalmente corretos, mas também de conteúdo tal que de fato representem o bem comum, ou a ele possam encaminhar.

54. Essa realização do bem comum constitui a própria razão de ser dos poderes públicos, os quais devem promovê-lo de tal modo que, ao mesmo tempo, respeitem os seus elementos essenciais e adaptem as suas exigências às atuais condições históricas.[28]

Aspectos fundamentais do bem comum

55. Mais ainda, as características étnicas de cada povo devem ser consideradas como elementos do bem comum. [29] Não lhe esgotam, todavia, o conteúdo. Pois visto ter o bem comum relação essencial com a natureza humana, não poderá ser concebido na sua integridade, a não ser que, além de considerações sobre a sua natureza íntima e sua realização histórica, sempre se tenha em conta a pessoa humana.[30]

56. Acresce que por sua mesma natureza, todos os membros da sociedade devem participar deste bem comum, embora em grau diverso, segundo as funções que cada cidadão desempenha, seus méritos e condições. Devem, pois, os poderes públicos promover o bem comum em vantagem de todos, sem preferência de pessoas ou grupos, como assevera nosso predecessor, de imortal memória, Leão XIII: "De modo nenhum se deve usar para vantagem de um ou de poucos a autoridade civil constituída para o bem comum de todos".[31] Acontece, no entanto, que, por razões de justiça e eqüidade, devam os poderes públicos ter especial consideração para com membros mais fracos da comunidade, pois se encontram em posição de inferioridade para reivindicar os próprios direitos e prover a seus legítimos interesses.[32]

57. Aqui, julgamos dever chamar a atenção de nossos filhos para o fato de que o bem comum diz respeito ao homem todo, tanto às necessidades do corpo, como às do espírito. Procurem, pois, os poderes públicos promovê-lo de maneira idônea e equilibrada, isto é, respeitando a hierarquia dos valores e proporcionando, com os bens materiais, também os que se referem aos valores espirituais.[33]

58. Concordam estes princípios com a definição que propusemos na nossa encíclica Mater et Magistra: O bem comum "consiste no conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana".[34]

59. Ora, a pessoa humana, composta de corpo e alma imortal, não pode saciar plenamente as suas aspirações nem alcançar a perfeita felicidade no âmbito desta vida mortal. Por isso, cumpre atuar o bem comum em moldes tais que não só não criem obstáculo, mas antes sirvam à salvação eterna da pessoa.[35]

Funções dos poderes públicos e direitos e deveres da pessoa

60. Hoje em dia se crê que o bem comum consiste sobretudo no respeito aos direitos e deveres da pessoa humana. Oriente-se, pois, o empenho dos poderes públicos sobretudo no sentido de que esses direitos sejam reconhecidos, respeitados, harmonizados, tutelados e promovidos tornando-se assim mais fácil o cumprimento dos respectivos deveres. "A função primordial de qualquer poder público é defender os direitos invioláveis da pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos seus deveres". [36]

61. Por isso mesmo, se a autoridade não RECONHECER OS DIREITOS DAS PESSOAS, OU OS VIOLAR, não só perde ela a sua razão de ser como também as suas injunções perdem a força de obrigar em consciência.[37]

Harmonização e salvaguarda eficaz dos direitos e dos deveres da pessoa

62. É, pois, função essencial dos poderes públicos harmonizar e disciplinar devidamente os direitos com que os homens se relacionam entre si, de maneira a evitar que os cidadãos, ao fazer valer os seus direitos, não atropelem os de outrem; ou que alguém, para salvaguardar os próprios direitos, impeça a outros de cumprir os seus deveres. Zelarão enfim os poderes públicos para que os direitos de todos se respeitem eficazmente na sua integridade e se reparem, se vierem a ser lesados.[38]

Dever de promover os direitos da pessoa

63. Por outro lado, exige o bem comum que os poderes públicos operem positivamente no intuito de criar condições sociais que possibilitem e favoreçam o exercício dos direitos e o cumprimento dos deveres por parte de todos os cidadãos. Atesta a experiência que, faltando por parte dos poderes públicos uma atuação apropriada com "respeito à economia, à administração pública, a instrução", sobretudo nos tempos atuais, as desigualdades entre os cidadãos tendem a exasperar-se cada vez mais, os direitos da pessoa tendem a perder todo seu conteúdo e compromete-se, ainda por cima, o cumprimento do dever.

64. Faz-se mister, pois, que os poderes públicos se empenhem a fundo para que ao desenvolvimento econômico corresponda o progresso social e que, em proporção da eficiência do sistema produtivo, se desenvolvam os serviços essenciais, como: construção de estradas, transportes, comunicações, água potável, moradia, assistência sanitária condições idôneas para a vida religiosa e ambiente para o espairecimento do espírito. Também é necessário que se esforcem por proporcionar aos cidadãos todo um sistema de seguros e previdência, a fim de que não lhes venha a faltar o necessário para uma vida digna em caso de infortúnio, ou agravamento de responsabilidades familiares. A quantos sejam idôneos para o trabalho esteja facultado um emprego correspondente à sua capacidade. A remuneração do trabalho obedeça às normas da justiça e da eqüidade. Nas empresas permita-se aos trabalhadores operar com senso de responsabilidade.

Facilite-se a constituição de organismos intermediários, que tornem mais orgânica e fecunda a vida social. Requer-se finalmente que todos possam participar nos bens da cultura de maneira proporcional às suas condições.

Equilíbrio entre as duas formas de intervenção dos poderes públicos

65. O bem comum exige, pois, que, com respeito aos direitos da pessoa, os poderes públicos exerçam uma dupla ação: a primeira tendente a harmonizar e tutelar esses direitos, a outra a promovê-los. Haja, porém, muito cuidado em equilibrar, da melhor forma possível, essas duas modalidades de ação. Evite-se que, através de preferências outorgadas a indivíduos ou grupos, se criem situações de privilégio. Nem se venha a instaurar o absurdo de, ao intentar a autoridade tutelar os direitos da pessoa, chegue a coarctá-los. "Sempre fique de pé que a intervenção das autoridades públicas em matéria econômica, embora se estenda às estruturas mesmas da comunidade, não deve coarctar a LIBERDADE DE AÇÃO dos particulares, antes deve aumentá-la, contanto que se guardem intactos os DIREITOS FUNDAMENTAIS de cada pessoa humana".[39]

66. Ao mesmo princípio deve inspirar-se a multiforme ação dos poderes públicos no sentido de que os cidadãos possam mais facilmente reivindicar os seus direitos e cumprir os seus deveres, em qualquer setor da vida social.

Estrutura e funcionamento dos poderes públicos

67. Não se pode determinar, aliás, uma vez por todas, qual a forma de governo mais idônea, quais os meios mais adequados para os poderes públicos desempenharem as suas funções, tanto legislativas, como administrativas ou judiciárias.

68. Com efeito, não se pode fixar a estrutura e funcionamento dos poderes públicos sem atender muito às situações históricas das respectivas comunidades políticas, situações que variam no espaço e no tempo. Julgamos, no entanto, ser conforme à natureza humana a constituição da sociedade na base de uma conveniente divisão de poderes, que corresponda às três principais funções da autoridade pública. Efetivamente, em tal sociedade não só as funções dos poderes públicos, mas também as mútuas relações entre cidadãos e funcionários estão definidas em termos jurídicos. Isto sem dúvida constitui um elemento de garantia e clareza em favor dos cidadãos no exercício dos seus direitos e no desempenho das suas obrigações.

69. Mas para que essa organização jurídico-política das comunidades humanas surta o seu efeito, torna-se indispensável que os poderes públicos se adaptem nas competências, nos métodos e meios de ação à natureza e complexidade dos problemas que deverão enfrentar na presente conjuntura histórica. Comporta isto que, na contínua variação das situações, a atuação do poder legislativo respeite sempre a ordem moral, as normas constitucionais e as exigências do bem comum. O poder executivo aplique as leis com justiça, tratando de conhecê-las bem e de examinar diligentemente as situações concretas. O poder judiciário administre a justiça com imparcialidade humana, sem se deixar dobrar por interesses de parte. Requer-se finalmente que os cidadãos e os organismos intermédios, no exercício dos direitos e no cumprimento dos deveres, gozem de proteção jurídica eficaz, tanto nas suas relações mútuas como nas relações com os funcionários públicos.[40]

Organização jurídica e consciência moral

70. Não há dúvida de que, numa nação, a organização jurídica, ajustada à ordem moral e ao grau de maturidade da comunidade política, é elemento valiosíssimo de bem comum.

71. Mas hoje em dia a vida social é tão diversa, complexa e dinâmica que a organização jurídica, embora elaborada com grande competência e larga visão, muitas vezes parecerá inadequada às necessidades.

72. Além disso, as relações das pessoas entre si, as das pessoas e organismos intermediários com os poderes públicos, como também as relações destes poderes entre si no seio de uma nação, apresentam por vezes situações tão delicadas e nevrálgicas que não se podem enquadrar em termos jurídicos bem definidos. Faz-se mister, pois, que, se as autoridades quiserem permanecer, ao mesmo tempo, féis à ordem jurídica existente, considerada em seus elementos e em sua inspiração profunda, e abertas às exigências emergentes da vida social, se quiserem, por outro lado, adaptar as leis à variação das circunstâncias e resolver do melhor modo possível novos problemas que surjam, devem ter ideias claras sobre a natureza e a extensão de suas funções. Devem ser pessoas de grande equilíbrio e retidão moral, dotadas de intuição prática para interpretar com rapidez e objetividade os casos concretos, e de vontade decidida e forte para agir com tempestividade e eficiência.[41]

CAIXA ALTA MINHA.

Celso Panza
Enviado por Celso Panza em 18/10/2018
Código do texto: T6479432
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