Boa Vista da Santa Cruz
Boa Vista da Santa Cruz é um achado perdido em meio ao nada, vilarejo ímpar, vida quase nada. Não se perca pelo caminho.
Ao que interessa, sendo eu nascido nessas terras da boa convivência, de amostras tradicionais e de costumes decentes, e cujo respeito uns aos outros nunca é demais.
Um certo dia, resolvi pôr em prática minha astúcia ao dar meu primeiro tiro com arma de fogo, eu estava na tenra flor da idade. Me recordo exatamente daquela tarde. Foi com a espingarda do meu avô, uma dessas garruchas de cangaceiro antigona. Ela ficava guardada no lugar de sempre há anos, "escondida", digamos, atrás do velho guarda roupa de madeira que havia em seu quarto. Desde os meus cinco anos de idade eu cresci atiçado pela imiginária intenção de manuseá-la um dia, tal episódio à seguir não tardou a acontecer de fato.
Eu tinha apenas nove anos de idade e não deixava por menos: impulsionado pela curiosidade e pelo ímpeto de garoto atrevido, vez em quando eu pegava a espingarda e fazia simular disparos enquanto brincava escondido aos olhos de todos.
Meu avô sempre tinha guardado uma dúzia de cartuchos carregados e outros vazios. De temperamento extramente severo, moldado pelo costume dos antigos, meu avô tinha consigo a fama de autoritário e não houve por aquelas bandas de terras sujeito capaz ou homem sujeito que se pusesse a desafiá-lo.
Voltando aos fatos, foi então que peguei emprestado de um amigo a ideia de preparar um cartucho vazio, assim meu avô não se daria conta de que alguém o teria usado. Apesar do medo que percorria meu sangue só de pensar naquela hipótese arriscada e pouco provável, havia ainda o desáfio de ponderar sobre o momento e o dia perfeito para executar o meu plano. O problema maior é que um tiro de espigarda faz um estrondo longínquo e duradouro, quer fosse onde meu avô estivesse distante ou não dali, sabia muito bem que ele poderia facilmente escutar e deduzir apenas pela direção cujo vento embala o som. Ademais, ocorre que o estampido do disparo vai rasgando o pasto até estourar seu pico final no pé da serra há quilômetros dali. O estrondo final parece encontrar na oquidão da grande montanha uma espécie de alto-falante selvagem dos Deuses, que por sua vez faz aturdir um ressoante grave no final. É decerto um dos efeitos sonoros mais bonitos que a natureza é capaz de reproduzir de tal forma inigualável.
Além do mais, a nossa fazenda era grande o sufuciente e não existia nada mais ao redor senão além de terras e mais terras ao longe, tomada pelo verde dos pastos e algumas dezenas de cabeças de gado para o sustento da familía.
Era um risco inédito para mim e eu tive de calcular detalhe sobre detalhe. Algo me dizia que não podia ser a qualquer dia da semana, então, pascientemente, esperei pelo Domingo à tarde. Era o dia perfeito pois todos estariam (e de fato estavam), na missa Dominical naquela tarde flêuma e monótona, menos eu que a esta altura por certo estava acabando de preparar o único cartucho para um único disparo em exercício.
Aquele trabuco dava quase o meu tamanho. Eu me sentia uma espécie de vingador mirim conquistando pasto adentro. Passei o coldre sobre o pescoço com a espingarda atravessada de trejeito entre meu peito e o cano longo que ia arrastando pelo chão. Finalmente, ao chegar às margéns do pequeno riacho não fiz muito ensaio: num único supato atrevesei de pronto um pardal a cem metros de distãncia na copa de uma árvore, estando eu do outro lado do rio. Uma judiaria sem prece nem tamanho, nem tampouco sei como explicar tamanha pontaria. Por Deus do céu! Nem que eu tivesse treinado uma vida inteira jamais acertaria outro disparo daquele conta tanta precisão e sorte grande. Um minúsculo pássaro do tamanho de um alvo era acertar ou acertar e sem margém de erro. Feliz e surpreso ao mesmo tempo, era assim que eu me sentia com o resultado certeiro do meu primeiro tiro em vida. Assim que a fumaça se dissipou diante dos meus olhos o pequeno pássaro ia caindo rodopeando as azas até encontrar o chão sobre as folhagéns. E, seguido de um só lampejo, os pássaros que tiveram a sorte de escapar dali com vida rapidamente lançaram-se pelos ares deixando para trás o derradeiro som do coxichar das asas cortando o vento, um silêncio logo tomou conta como se eu estivesse ficado para trás diante de um paraíso inóspito e desconhecido em meio ao nada.
Pois bem. Na minha época todo mundo tinha uma arma, manos eu, é claro. Os adultos, no caso. O que, atualmente, creio que ainda é costumeiro por demais. É costume arcaico de vila pacata de interior. É tão-somente Boa Vista da Santa Cruz, onde os cavalos ficam amarrados no tronco das arvores em praça pública, a única praça existente, aliás. Uma Paróquia, algumas casas ao redor e, destas, duas ou três vendas compõem o bastante para um pequeno povoado. Boa Vista da Santa Cruz é quase nada em um lugar distante, nos confins do interior do Paraná. Que passe pelo tempo uma geração inteira ou um século há mais, trata-se de um vilarejo cujo nada muda, não cresce pra frente nem recua pra trás, é um lugar esquecido na bolha de seu próprio do tempo. E, enquanto nada de novo acontece, velhos amigos e rivais matam o tempo no boteco entre uma partida e outra no jogo de bilhar: "uns com facão na cintura, canivetes na bainha e, discretamente, alguém sempre há de ter um resolver à moda calibre oitão ou uma garrucha de cano bilíngue". Entre eles, jogadores e espectadores se assistem enquanto jogam conversa fora. Um clima de cordialidade e rivalidade se dissipa pelo ar. No que parece, porém não à toa, um respeito mutuo parece descontrair a todos, aparentemente, tudo muito calmo é ao mesmo tempo desconfiança, um sinal de que a qualquer momento ou um silvo de guerra ou uma briga pode facilmente acabar em coisa pior. Alguns são bons no tiro; outros, no taco de sinuca, assim como há também os bons de papo e os valentões de briga. Um ambiente calmo e vulneravel demais onde uma piada errada vira sinônimo de afronta e desconforto. Meu avô era um deles: sujeito nada pacífico. Uma versão de cherife ilegal da porra toda. Assim é Boa Vista da Santa Cruz, um cenário quase faroeste marcado por seus personagéns icônicos em um ambiente de cômico de pura falta do que fazer. Talvez por por isso Boa Vista da Santa Cruz é irretocável e basta por si só. Não era preciso mais do que dois botecos para a rapaziada se dividir entre seus comprades. Ainda sim, num cenário como este, você deve estar imaginando o pior, mas a bem verdade é que nem por isso as pessoas se matavam entre si. Exceto pelo tal mineirinho, do que me lembro, foi um temido sanguinário com fama de matador, sujeito que até então ninguém sabia muito bem de seu, a não ser pelos boatos distantes de que povo tinha conhecimento, até o dia em que, tendo o tal mineirinho se desentido com o motorista, mineirinho acabou matando o motorista escolar da cidade com três tiros em frente à Igreja. Um ato covarde que deixou a todos comovidos pela brutalidade da morte do bom moço. Desde então o tal mineirinho deixou o vilarejo sem deixar rastros para virar lenda. Os últimos boatos sobre o tal sujeito davam conta de ele havia sido baleado na testa ou coisa do tipo, boatos davam conta de que ele foi visto perambulando como um morto vivo pelas fazendas nos arredores, até que nunca mais se houviu falar do sujeito. De todo o mais grave o tal mineiro foi um caso raro e único a tirar o sossego daquele antigo povoado. Anos 94, eu suponho.
Pois bem. A reflexão que faço à seguir tende a reafirmar que armas não matam, o que mata são pessoas. Porém, da vida simples do campo à vida agitada das grandes cidades há uma difêrença enorme e preocupante. O povo anda à flor da pele contra tudo e contra todos. O cidadão não suporta mais ser assaltado de quando em quando, talvez por isso eu acho pouco provável que um trabalhador irá pensar duas vezes antes de ceifar um vagabundo ao menor sinal de ameaça.
Boa Vista da Santa Cruz não é um causo qualquer sem causa, trata-se de uma reflexão acerca do momento político atual, cujas soluções são duscutidas às pressas no calor hipotético das ideias impensadas frente ao caos violento e desesperador que o país se encontra. Se por um lado a população parece rejeitar o porte de arma de fogo; por outro, bem ou mau compreendo que a ideia de Bolsanaro tem a intenção de ser boa, mas na prática não posso ignorar o fato de que pode representar um equívico quanto à sua ideia de sociedade "civilizada", digamos.
Evidente que assusta um bocado à primeira vista, por outro lado, se não houver obediência e respeito às leis, pelo menos tende a impor respeito acima de tudo e Deus acima de todos.