A LASSIDÃO DA PASSAGEM

Aqui no Passo de Torres, a minha aldeia entre o mar grosso e o Mampituba, o rio dos golfinhos, um agradável dia de sol em que reina a placidez dos deuses. O coração está em plenitude. Netuno estirou-se numa longa sesta, e as sílfides se fazendo de sonsas namoram muito pelos arredores, deitadas sobre as dunas prenhes de areias, vegetação rala e maresias. O vento levanta o pavio da palavra e, com a sensação de que tenho de registrar o momento, salto da cama com a língua pastosa e exala uma linguagem na qual o poético predomina e toma conta desta intempestiva modorra dos dias abafados do quase-verão. Há no ambiente um pouco da sensação de inutilidade dos domingos e feriados. Porém, à espera do recobrar dos neurônios ágeis apercebo-me do tempo de lassidão dos gatos: olhos semicerrados espreguiçando-se sem nenhuma cerimônia e abrindo a boca com uns dentões de arrepiar os pelos. O decurso dos instantes de sonolência pode se medir tal como as lesmas que se espicham e babam o andar, deixando rastros ao mover-se para além das longas antenas, os olhinhos de esguelha, baços, na turbidez dos sem-destino. Ainda assim permanece a umidade do itinerário da passagem. Por vezes, e em muitas, espreguiçar-se serve como alento para se saber vivo, mas o acordar assim é perder o trem da morte. O quase faltante para finar-se sem ir mais além.

– Do livro inédito A BABA DAS VIVÊNCIAS, 1978/2018.

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