A moça com Síndrome do Pânico e o moço falante

Ela amava de forma intensa; era entregue, delicada, companheira e preocupada. Na forma sublime de amar ela sonhou e desejou o eterno, o príncipe, o que iria cuidar de sua alma e amar seu corpo, mas, a vida não leu seus doces pensamentos.

Na lúdica e inocente infância brincava de ser bailarina, cantora, médica ou apenas mãe. Fazia sua casa conforme sua mente desenhava, dava nome aos filhos, ao marido e companheiro. Viajava pelo mundo com sua família feliz e imaginária, conheceu a maldade nos banhos da tarde, quando o olho desejoso e maligno lhe espiava pela fresta da porta. A mesma fresta que nunca era consertada pelo tio que lhe espiava.

A bailarina e sonhadora se entregou a treva do medo, da fuga e do temor de ser encontrada no canto sozinha. O temor não era em vão, o olho que a desejava também lhe perseguia na solidão da casa vazia. As mãos sujas e sem pudores buscava o seu corpo e a boca infernal, lhe fazia ameaças, acabando com a doçura daquela infância primaveril.

Tantas vezes ela se entregou a maldade daquele desejo diabólico discreto. Sentia-se culpada pelos atos distorcidos daquele malfeitor. Ele se mudou, ela cresceu, mas a história não se apagou. O desejo de encontrar o curador de sua alma, o acariciador de suas dores foi tecendo seus sonhos, porém, sempre misturada a linha negra do medo. Ela encontrou alguém.

Apaixonou-se por alguém mais velho, parecia ser o homem ideal para entender suas feridas e cuidar de seus desamores. No início lhe parecia bom, sentia-se segura ao seu lado e logo se casou. Os primeiros dias foram bons, mas, logo conheceu a face oculta, aquele olho por trás da fresta na infância, parecia dominar seu homem e possuído, não demorou muito para que lhe ferisse. Primeiro no rosto, deixando marcas por dia, logo passou a ser por todo corpo e por qualquer motivo.

Num fim de tarde, perto do pôr do sol, o rosto marca e a desesperança morando no peito, lhe sobreveio uma angustia terrível, algo sem controle, algo sem medida.

Era uma sensação de que a morte havia chegado, de que o peito iria parar a qualquer instante; a respiração ofegante, o desespero e a vontade correr para algum lugar, tomaram conta de seu corpo. Tudo tremia, as mãos esfriaram, a boca formigava e na mente uma voz: “sua hora chegou”. Foram minutos de agonia, minutos de terrível medo.

Ela não se lembrara de como chegou à emergência do hospital. Ela estava ali, sendo dopada, ainda sem entender de fato o que acontecia inerte e com o medo permeando sua mente. A tragédia mental lhe corroeu por dias, e por dias voltou para a emergência tratar do mesmo mal. Mas a mente já estava entregue ao medo. Medo de ter o fim próximo; medo de ter o coração parado; medo de não mais respirar; medo de ficar sem vida.

Encontrou alguém que lhe indicou um especialista, procurou e marcou consulta. Na espera de seu atendimento, observou que o sol brilhara, no entanto, o brilho nem lhe trazia beleza alguma. Observou que havia muitos a espera de atendimento, um rapaz falante percebeu sua tensão e perguntou:

-É a primeira vez?

-Como? Sim, é a primeira vez. Respondeu ainda atordoada.

-Não se preocupe você vai dormir bem hoje. Vão lhe prescrever algo que te fará ficar tontinha de sono. Falou o rapaz olhando para o teto.

-Eu não quero dormir, quero só voltar a ser que sempre fui.

-A gente nunca volta ser o que foi. A gente passa por isso, para sair melhor do que era.

O rapaz se inclinou na cadeira com olhar manso e o silêncio foi interrompido pelo chamado do médico. Ela entrou no consultório e saiu com uma lista de medicações que lhe parecia um atestado de loucura e não, uma forma de se curar.

Saiu da sala e deu de cara com o rapaz falante. Ele a abraçou e disse:

-Você vai ficar boa, a noite sempre acaba.

Ela seguiu para casa, encontrou os mesmos problemas, as mesmas tristezas e as mesmas feridas. Acordava com vontade de não existir, e existia apenas o imenso vazio em sua alma. Não havia mais beleza no rosto, não havia desejo, apenas lágrimas e lágrimas. Crises, medo e mais choro.

Mas uma voz ainda ecoava dentro da mente: “Você vai ficar boa, a noite sempre acaba”.

Entre crises, noites dopadas, lágrimas e incompreensão ainda lhe restava um fato para completar o caos, o seu companheiro numa madrugada a deixou como fazem os covardes. Sem esperança, força e amor, tentou ao menos ter fé.

Meses depois voltou ao seu médico e na espera da consulta encontrou o rapaz falante. Ele prontamente a cumprimentou e perguntou:

-Está melhor?

-Nenhum pouco, pareço ter piorado. Disse ela com a voz embargada.

-Não se deixe abater, não há boa árvore que não perca folhas no outono para depois florir. Isso passa e você vai sorrir.

- Eu não acredito mais em sorriso.

-Mas em sorvete você acredita? -Disse ele debochando.

-Como assim? Claro que sim.

-Então vamos tomar um sorvete antes que dê seu horário.

Ela não tinha vontade de viver, quanto mais tomar um sorvete, mas aceitou. Escolheu o de chocolate como sempre, e entre uma colherada e outra na massa gelada, ouvia as falas daquele moço otimista.

-Veja, eu já estive assim, como você. Parecia que tudo era noite e não havia vontade de viver, mas entendi que meus remédios me ajudam, só que a cura... A cura vem de dentro da minha alma, do meu desejo de ser melhor.

-E como é isso?

-Vamos ao cinema amanhã que te conto.

Ela aceitaria qualquer coisa naquele momento da vida, e disse “sim” para o convite inusitado. Ela acordou com o mesmo sentimento de desistência, dor e tristeza, pensou melhor desistir do passeio. Teve crises a tarde e tirou a roupa que colocara para o encontro, se trancou no quarto e decidiu ficar, porém, a campainha tocou. Ela imaginou que deveria ser sua mãe, mas teve uma grata surpresa.

-O que faz aqui?

-Imaginei que você não iria querer sair de casa e trouxe o cinema para cá. Disse o rapaz com um filme na mão e o saco de pipoca na outra.

Naquele início de noite parecia um dia ensolarado. O rapaz falante contou tantas boas histórias que pela primeira vez em meses, a moça triste voltou a sorrir. Foram horas de gargalhadas, horas de limpeza de alma, nenhum assunto era proibido, tampouco, visto com negatividade por quem ouvia. Ela teve coragem de falar do olho que lhe desejava e lhe feriu, ele contou uma história parecida, eles se entenderam.

Aquele encontro passou a se repetir semanalmente, uma terapia, uma faxina que a alma implorava. Sorrisos, choros, às vezes crises, mas a cada dia, eram vistas com maior intervalo. Ela passou a entregar a alma para o rapaz falante, e suas feridas estavam cicatrizando pouco a pouco.

Não demorou muito para que a paixão lhe viesse ao peito e o amor lhe cobrisse por inteiro. Os beijos, as carícias e as conversas eram bálsamo para os medos que lhe rondavam a cabeça. Os dias passando e o medo deixando a alma e a mente, ao ponto do sorriso estampar no rosto em quase todas as horas do dia.

Numa bela madrugada, após terem se amado com devoção, verdade e volúpia, o raio do sol buscara uma fresta para iluminar o canto do quarto. Ela deitada em seu colo e ele acariciando seus cabelos, a respiração de ambos era audível e quando a luz do sol tocou a pele de sua amada ele disse:

-Meu amor, eu lhe disse que a noite sempre acaba.

Samuel Boss
Enviado por Samuel Boss em 15/10/2018
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