Tempos
Carrego em meus ombros a nostalgia de tempos outros que se perdem na memória dos séculos. Sou o produto final de milhares de anos de uma geração incerta. Desfilam na minha presença, nos delírios e devaneios em noites quentes e secas, os muitos vultos de minha ancestralidade memorial.
Não sou membro de nenhuma casta nobre.
Perambulo no mundo, tal qual um vadio cão.
Sobrenome sem brasão.
Tenho no rosto as marcas de minhas aventuras.
Os cabelos negros ameaçam abandonar o pelotão e os que não ficam brancos, caem pelos trilhos e encruzilhadas.
Sou um bufão.
Criei uma pequena família, que se farta em uma mesa na sala.
Desejei ter mil sonhos, quando na fase em que eu ainda acreditava.
Sou agora um cínico,
Um tonto,
Um ébrio que se afoga nos pesares dos próprios pensamentos.
Resta ainda um pouco de alegria,
Um quê de nostalgia,
Um toque de magia.
Não sei o que escrevo, se crônica ou poema – que texto é esse? Que sou eu?
Talvez seja um testamento vivo,
Uma marca,
Como a que os amantes fazem nas árvores sem respeito ao ambiente.
Cravei na poeira o meu selo.
Em meio à praça pública, de terno, gravata, cercado por uma multidão de estranhos vultos, eu berro, grito e me ajoelho diante de uma nuvem de pó cinzenta.
Caio de joelhos e sinto que a multidão se afasta.
Olhares me fuzilam no auge da insanidade.
Choro e rezo, como quando criança, no silêncio do meu pequeno quarto entre os brinquedos e quadros sorridentes de vultos felizes.
Sinto, naquele momento, uma grande paz de espírito.
A multidão, cansada de minha dor, segue adiante. Quase me pisam.
Caio em riso e olho para o céu.
No meio das nuvens posso ver descer um raio de luz que me abate.
Sinto-me leve e desprendido do corpo.
Ficou a pasta que alguém levou.
A família recebe o telefonema: partiu o coração.
Ainda assisto ao funeral.
Não fico triste, não choro por mim.
Foi então que ouvi os sinos que dobravam e,
Realmente atestei:
Os sinos dobram por mim...