O vizinho do 608
O que se relata aconteceu num prédio não muito populoso no centro da cidade. Durante meses, o 608 ficou vazio. Samuel sabia da vacância porque, debaixo – no 508 – não se ouvia sinal de gente. E ele já se acostumara ao vizinho antigo, cujo apartamento frequentava e não tinha lá muitos escrúpulos de barulho. Ouviam-se passos, às vezes algo que caía no chão – e a empregada barulhenta limpava a casa. Samuel nem ligava para aquilo. Gostava do amigo e da família, a quem conhecera quando pra lá se mudaram, e sentia falta daquele incômodo. Estava tudo muito quieto; foi quando chegou gente nova, mas o silêncio permaneceu. Nada por lá acontecia.
Samuel era um sujeito conversado e não perdia a oportunidade de travar uma conversa, e se enturmar com as pessoas, e fazer visitas. Conhecia a todos no prédio, que, como se disse, não era grande, e gozava da amizade de todos. Até em época de eleições presidenciais, ele falava aos quatro cantos sobre sua preferência e não causava nenhum mal-estar...
Foi fácil identificar, no elevador, que o homem sério que com ele subia era seu vizinho do 608. Saudou-o e recebeu um frio boa-tarde, que desanimava qualquer conversa. Entrou em sua casa e percebeu leves movimentos no apartamento de cima.
Não se disse que Samuel morava com a mulher e as duas filhas, porque esse detalhe não seria importante para o nosso relato. Não se disse, também, que o homem era por demais falante, pensava depois de falar e às vezes criava constrangimentos – e isso é necessário dizer agora.
Certa feita, no mesmo elevador, uma vizinha, há tempos não vista, apareceu bem mais obesa do que da última vez em que se viram. Era uma jovem senhora, ainda muito apta a procriar e, sabendo-a sem filhos, Samuel sapecou-lhe as felicitações, que toda grávida adora receber:
– Parabéns pelo bebê que se avizinha!
– Bebê?! Estou chegando do médico...
Samuel não percebeu o desagrado da mulher:
– Pré-natal?
– Não. Minha barriga está crescendo, e o médico não sabe o que é.
Samuel lamentou.
Por essas e outras, nosso personagem foi ficando mais precavido e não saía por aí a fazer perguntas para romper o silêncio e, quem sabe, cativar novas amizades.
Passavam-se os dias, e do 608 vinham poucos ruídos – raramente também encontrava o vizinho na portaria ou no elevador. O homem – de cara amarrada – era alto, forte, exibia uma calva e se escondia atrás dos óculos e do bigode. Samuel chegou a temer que se tratasse de algum fora da lei, ali bem perto dele, mas o síndico lhe deu o perfil do homem: tinha 65 anos, era advogado e exercia o ofício. O síndico sabia que o homem tinha família, que ainda viria para o prédio. Que alívio! Era preciso falar com ele, abrir-se ao diálogo, mas...
Oportunidades surgiram. Como Samuel estava precavido, talvez as perdesse. Um dia o vizinho exibia uma revista semanal à mão. Samuel cumprimentou e foi cumprimentado, ensaiou perguntar se ele gostava da revista, mas se lembrou daquele personagem Saraiva, lá da tevê, e refreou-se. Foi o homem para o silêncio do 608. Encontrou-o um dia com sacolas de supermercado; em outro, trajando um training (iria para a ginástica?); em outro, portando um livro enorme, talvez um vade-mécum. Mas Samuel sofreou-se, e é até possível que desistisse de fazer aquele doutor distante um amigo seu. Seria preconceito ou só carranquice mesmo?
Passado algum tempo, de novo no elevador, que subia, surgiu a oportunidade de ouro. Samuel entra rápido e encontra o do 608, de mãos com duas meninas, de no máximo seis anos. Tinha de ser educado, e era o momento da conversa inaugural. Ao boa-tarde, seguiu a pergunta, bem típica dos antigos tempos:
– Passeando com as netinhas?
O homem, que sério estava, sério ficou, e apenas respondeu enfático:
– São minhas filhas.
Silêncio! Silêncio! A chegada ao 508 pareceu uma eternidade.