Solidão
Eis aqui, solto, um fato sobre a solidão: cientistas descobriram que a quantidade de cortisol (hormônio responsável pelo stress) liberada por uma pessoa que vive só é semelhante à quantidade liberada por uma pessoa que é socada na cara por um estranho. Além disso, descobriu-se também que pessoas em solidão vivem em um estado de hipervigilância constante, o que tem como consequência maior agressividade e desconfiança por parte do solitário em relação a seus semelhantes, além de outras doenças.
De estranho é que essa informação não tem nada. Pensemos em termos evolucionários. Nosso cérebro é uma máquina desenvolvida ao longo de milhões de anos. Cada expansão, cada nova área, cada nova função necessita dezenas de centenas de gerações para ser desenvolvida, testada e aperfeiçoada. Nosso convívio em sociedades modernas, complexas e principalmente urbanas é algo novo, “de ontem”. Ou seja, somos os mesmos velhos cérebros, com as mesmas velhas reações químicas, com os mesmos instintos selvagens brincando de um faz-de-conta civilizado (se o caro leitor é da escola que acredita que somos seres superiores, civilizados, racionais por conta daquilo, disso e desse, entendo se me abandonas ao fim deste fechar de parênteses). Simplesmente não houve o tempo para adaptarmos nossos contratempos endógenos - suprimimo-los através de técnicas exógenas.
Naqueles milhões de anos atrás, estar sozinho significava basicamente o fim: caso um nosso ancestral fosse atacado, quando longe de sua tribo, por um grande animal ou por outra tribo, não teria chance alguma. E mesmo sem ataques teria baixíssimas chances de sobrevivência: provavelmente não conseguiria caçar, limpar e preparar a carne, construir ferramentas e armas, cuidar do fogo, proteger-se das variações climáticas sazonais, plantar e colher frutos sozinho. O único recurso disponível para aumentar suas chances de sobrevivência era estar o tempo todo em estado de hipervigilância - aumentando seus níveis de adrenalina e cortisol.
Há até uns 150 a 40 anos atrás, dependendo do país que se retrata, ainda vivíamos em nossas “tribos” e não havia grande necessidade de deixá-las. O vizinho da esquerda era entendido de máquinas e amigo de longa data, do vizinho da direita fomos padrinhos de casamento e ele construía como ninguém - construímos inclusive, juntos, nossas casas. O vizinho ali do outro lado da rua, mais à ponta, tem umas vaquinhas leiteiras que suprem o bloco todo (quando crianças, fazíamos diversas traquinagens com as vaquinhas coitadas.) O padrinho dos meus filhos morava ali na esquina e tinha umas galinhas - não precisava nem pedir, era só entrar na granja e pegar os ovos.
Mas aceleremos o passo um pouquinho, tenho que preparar o almoço e essa aqui é só uma reflexão rápida.
Essas tribos do parágrafo anterior tinham muitas vezes tamanhos de cidades inteiras - de arquitetura própria, do estilo “quase todas feitas pelo Seu Chico” e de cultura única, “todo mundo conhece todo mundo.” Com o tempo, parece que tornaram-se tímidas ou que esqueceram a jaqueta numa noite de outono: começaram a encolher. De repente a cidade inteira que chamávamos de lar tornou-se a vila, depois o bloco. Quando menos percebemos, era a nossa rua. E depois que piscamos uma outra vez, o lar era estas quatro paredes que nos envolvem.
O filósofo do boteco ali da estação disse uma vez que, na verdade, “lar é o lugar onde as pessoas notam quando você não está lá”. Finalizo, sem delongas, com uma pergunta de algibeira: o que teria dito este mesmo filósofo sobre o caso de um senhor, achado morto por conta de um infarto em Londres, cuja morte só foi descoberta após três meses - não por notarem sua ausência, mas sim por conta de uma nova presença: a do cheiro de putrefação?