A CACHAÇINHA DAS ONZE HORAS

Da  série:Memórias  da minha  rua

À quem é aqui da Vila...
(redesenhando a geografia do pedaço)

Dois casarões muito grandes em madeira.Um dêles, onde moravam meus avós, exatamente em frente onde hoje situa-se o "Supermercado Cupim".
O Outro...Onde existiu até pouco tempo a Loja da Tita.(Tita Presentes)
Estamos no final dos anos 50.Este que vos relata,tinha então entre 7 a 8 anos de idade.
No casarão de meu avô, rescendia a comidinha inesquecível de vó Izaura.
Do outro lado da estrada, as garrafas enfileiravam-se no armazem de "Seo Ozorio de Andrade" (amigo inseparável de meu avô José)
(Nesta  foto,meu  avô  ao lado de  dona  Olímpia,sua  irmã)

Vovô, um velhote sistemático.
Andava sempre bem vestido,e o momento das refeições,ainda que houvesse apenas o trivial,era solenemente encarado por ele.
A cozinha era espaçosa.Seo José,num dos cantos da mesa,sentado numa daquelas cadeiras antigas de barbearia (com um regulador de altura no encosto),embrulhado em mantas e com a cabeça recostada no ajuste mais alto da cadeira em função de alguns problemas respiratórios que o acometiam.
Os cabelos bem penteados e sempre bezuntados à brilhantina.Vez e outra,dependendo das variantes de seu humor,chegava ao cúmulo de usar gravatas "para o almôço".
Vó Izaura,tôda solícita,ao redor da mesa,buscando a melhor forma de agradar o "excêntrico" amor de sua vida.
Vindo de uma outra extremidade da Vila,de calças curtas e cabelos lambidos,chegava eu ,todos os dias e no mesmo horário,incumbido de descer à bodega do Ozório apanhar o "talagaço" que abriria o apetite do "impecável" avô.
Vovó dava-me a "meiótinha" e uma nota de cinco cruzeiros (creio que era esta a moeda da época) e eu rumava ao velho armazém.
Seo Ozório apanhava um litro daquela "das boas",derramava calmamente numa jarrinha de vidro e ia acrescentado algumas poções que ele mesmo manipulava.
(Não era curandeiro,mas possuia o dom de criar ou indicar algumas poções com altos poderes medicinais) .
Em minha infância tomei alguns remédios indicados por êle.
Deu no que deu !... Fazer o quê?
Mas,voltando ao assunto...
Com o produto em mãos,pagava seu Ozório,que me devolvia uma nota de cor laranja cujo valor era de dois cruzeiros.
Adentrava à cozinha de meus avós,entregava a meiótinha ao destinatário que,devolvia-me o troco (os dois cruzeiros) sistemáticamente,recomendando-me que adquirisse alguns doçes com o valor do frete.
Meu prato, já feito por vovó, era degustado às pressas (nunca comi algo tão delicioso em tôda a minha existência) e eu corria para torrar a grana do troco.
Como não haviam muitas opções naquela época,os dois cruzeiros, revertiam-se sempre num punhado de balas "Bela Vista" com sabor de tangerinha.
( Inesquecíveis ! )
Assim sucedeu-se por meses,anos até,numa rotina interminável,cansativa.
Certo dia, tentando agilizar o processo, assim que seu Ozorio repassou-me a garrafinha da "preparada", antes que retirasse da gaveta o troco habitual,fui lhe adiantando:
-Me dá o troco em balas ! Bela Vista, de tangerina !
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Linda manhã de um outono cheirando à caquis.
Adentro à cozinha do casal Gomes.Vovô me parece mais enfurnado que costumeiramente.
Entrego-lhe a cachaçinha.
A pergunta vem de forma incisiva:
-Cadê o troco???
Tremi nas bases, gaguejei, tomei coragem e falei de minha "modernidade".
-O troco...O troco...Eu já comprei em balas, pra não ter de voltar depois.
Um par de olhos fulminou-me, e a boca proferiu alguns elogios acompanhados de uma ligeira crise de tosse:
-Piá de bosta ! Passou por cima de minha autoridade ! Não admito isso ! "cof,cof,cof...(Crise de tosse)
Some de minha frente, Cabrito teimoso ! (Eu era magro à época,daí...O comparativo à figura sempre esbelta de um cabrito) destesto gente que não me obedece.
Saí meio sem graça, vó Izaura acompanhou-me até o portão e alisando-me os cabelos dizia-me:
-Vai passar ! O “Zeco” as vezes fica nervoso,.mas passa logo.
Não passou. O tinhoso,com perdão da  palavra,apenas abrandou-se um pouquinho,mas perdi meu posto de comprador de cachaçinha. Minha prima Cleri,foi quem assumiu a “pasta” desde então.
As vezes fico confabulando cá com meus botões:
Que tal um presidente da república com a firmeza de carater do vô José ?