As coisas que nunca fiz
Sou aquele que não é e descrevo as coisas que nunca fiz.
Sentei diante do pai que nunca tive esperando ouvir o conselho que nunca veio.
Caminhei por uma vida que não queria e amei pessoas que não me amaram.
Subi por ladeiras que me derrubaram e entornei bebidas que não gostava.
Conversei sobre assuntos que não me interessavam e trabalhei em empregos que não queria.
Segui o credo dos outros e recitei preces que esqueci.
Não escolhi o meu cabelo, meu rosto ou o meu corpo.
Leio livros aos quais sou obrigado e assisto a vídeos que não aprecio.
Sou fadado a viver eu um mundo que desconheço.
Pesquei em mares que secaram.
Comi petiscos que estavam ao alcance.
Hospedei-me em paragens estranhas, das quais não gostei.
Beijei uma boca que estava disponível.
Lambuzei-me em corpos sem nome, ou com nomes incertos.
Deixei a melhor parte da vida na memória de outro.
Não pedi tal nome.
Não nasci em Pasárgada.
Não sou amigo do rei.
Não dancei com o demônio à luz do luar.
Não perdi meu tempo, por que nunca tive tempo para mim.
Tropecei em pedras pelo caminho,
Sempre há uma pedra,
Um buraco,
Um tapete,
Um guarda na esquina e um par de algemas.
Perdi a identidade em uma briga de rua.
Levei na nuca uma garrafada.
Caí da bicicleta.
Queimei a mão no leite quente derramado.
Não perdi, no entanto, a esperança, pois não se perde o que se nunca teve.
Sei agora, que o amigo se cansou de mim.
Vou-me embora, embora para o nada...