O DIREITO AO BANHEIRO

Quem acumula mais consegue mais espaço: esta é a lógica das cidades. Logo, as áreas centrais ficam em prol dos bancos, do comércio varejista, dos prestadores de serviço e, em alguns casos, moradias de luxo para os poucos proprietários de empresas ou integrantes da alta burocracia. Lá nas zonas longínquas, de acesso mais demorado e sem, em muitos dos casos, moradias de alto padrão, ficam os assalariados e aqueles que vivem de atividades informais: uma maioria da população que não é atendida no direito à moradia digna como direito constitucional (além de estigmatizada como “perigosa”, “sem asseio” e outras formas de violência simbólica). Este fenômeno sempre fez que os centros das cidades tivessem um equipamento urbano mais completo que as demais áreas, no que diz respeito à iluminação pública, ao saneamento, ao transporte, à segurança pública e aos serviços públicos – isso sem contar a qualidade dos interiores dos prédios particulares onde se abrigam o capital e a alta administração pública (lugares que expressam a concentração de poder e renda).

Mas uma coisa é muito usual, seja nas cidades antigas ou planejadas: a deficiência de banheiros públicos que deem conta do fluxo de pessoas que transitam, seja no centro da cidade ou nas suas áreas contíguas. Não é comum o comércio e os bancos ofertarem banheiros somente aos seus clientes, colocando a margem as pessoas que não consomem suas mercadorias, dado o fato das administrações municipais não terem legislações e mesmo meta em seus planos diretores para efetivar o direito à higiene corporal urbana isonômica. Há exceções no mundo, como apontaremos nos casos belga e holandês, que estão inovando em termos de equipamentos sanitários coletivos de alto padrão e gratuitos para qualquer transeunte, seja ele um executivo ou um morador de rua.

Desde os avanços das ciências médicas e do sanitarismo, após a 2° metade do século XIX, a partir de Louis Pasteur e da Microbiologia, descobriu-se que existem microrganismos patogênicos que se proliferam por conta da ausência de asseio, de esgotamento de esgotos, de manuseio de alimentos e falta de hábitos de higiene que condigam com as aglomerações urbanas que nascem na Revolução Industrial. Urina e fezes humanas sempre foram os meios para propagação de epidemias que causam impactos aos sistemas de saúde social, ainda mais quando existem maiores índices de densidade demográfica, como nas cidades, metrópoles e megalópoles. Usualmente as mãos das pessoas são veículos microrganismos que ali aderem por falta de hábitos eficientes de assepsia após o uso do vaso sanitário (mãos que apertam mãos ou que manipulam produtos, maçanetas etc).

Muito avançaram áreas médicas com a urologia e a gastrenterologia que estudam, respectivamente, as patologias urinárias e do aparelho digestivo. Uma coisa é reconhecida no meio: adiar por longas horas o ato de evacuar ou urinar trás sérias consequências a médio e longo prazo, um comportamento neurótico que vem sendo muito comum no "habitus" urbano, devido à competitividade e ao stress na jornada de trabalho:

“De acordo com o proctologista, quando não se evacua ao primeiro estímulo, as fezes retrocedem de uma porção mais final do reto para o segmento imediatamente acima, chamado cólon sigmóide. Essa parte do intestino é capaz de absorver a água das fezes, fazendo com que, no próximo estímulo, elas cheguem mais ressecadas ao reto.” (cf. https://www.vix.com/pt/bdm/saude/segurar-o-coco-pode-causar-8-problemas-de-saude-de-hemorroida-a-aneurisma, acessado em 31/08/2018, às 8:35)

Muitos acordos e convenções coletivas de categorias e profissões estão pensando a exigência do banheiro químico (péssimo!) como direito trabalhista, como no caso dos empregados de empreiteiras de pavimentação de rodovias. Impedir os empregados de irem constantemente aos banheiros já foi tratado na justiça do trabalho como assédio moral, gerando indenizações em dissídios individuais e coletivos.

Fora isso, as leis sanitárias evoluíram muito e, desembocaram, no caso brasileiro, na exigência do Plano Nacional de Saúde, após a CF/88, o qual não menciona a construção em massa de banheiros públicos de qualidade (o direito à higiene corporal urbana isonômica). Ou seja: a construção de sanitários coletivos em cidades como parte de uma política de saúde e de prevenção de diversas patologias e epidemias não é levado a sério.

Fora essa questão, outra aflige a questão do sanitário público ou de uso coletivo: sua dicotomia masculina e feminina em idade adulta. Não são contemplados idosos, deficientes, crianças, bebês, travestis, como se somente adultos de ambos os sexos fossem os únicos que tivessem necessidades fisiológicas no espaço urbano.

O descaso talvez tenha uma explicação: o banheiro sempre foi um tabu. Ele sempre foi um assunto muitas vezes tratado como escatológico, devido aos odores que as pessoas deixam ou mesmo o barulho constrangedor que fazem (os quais independem de classe ou status). É um dos cômodos mais recentes dos imóveis urbanos e ainda deve muito em conforto, assepsia, isolamento acústico e ergonomia por ser um “o último rascunho” apenas em projetos de arquitetura, especialmente de edifícios nos quais transitam um volume significativo de pessoas, a despeito de hospitais e demais repartições públicas de atendimento. Foi um dos últimos cômodos habitacionais a serem pensados pela moderna arquitetura, que durante o século XIX foi desmontando os conceitos tradicionais de habitação herdados da vida campestre feudal em prol dos modelos de habitação mais condizentes com a sociedade industrial massificada. Nos meios rurais sempre o ato de evacuar e urinar foram ao ar livre, dado o isolamento populacional. Nem mesmo havia uma ampla gama de produtos de asseio como a indústria produz atualmente, como papéis, desodorantes, pastas dentais etc.

O problema da pesquisa que pretendemos conduzir na área de urbanismo é reconstruir a história do banheiro como cômodo habitacional, tendo em vista a construção das ideais de higiene ao longo do processo histórico, especialmente após Louis Pasteur. E, num momento posterior, entender o motivo pelo qual os planos diretores das cidades brasileiras, as iniciativas de leis do Poder Legislativo (municipal, estadual e federal) não consideram que o banheiro público de qualidade seja uma homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado na Constituição de 1988, tendo em vista que as populações de rua são as que mais necessitam deste equipamento para cuidarem do asseio corporal (na forma de banheiro com vestiário). Pensa-se que ao longo da pesquisa seja necessário fazer uma classificação da tipologia de banheiros de acordo com o tipo de edificação urbana e como os códigos de obras dos municípios o contemplam (se é que contemplam).

LUCIANO DI MEDHEYROS
Enviado por LUCIANO DI MEDHEYROS em 30/09/2018
Reeditado em 11/04/2020
Código do texto: T6463848
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