MARCHA RÉ
Ah! Estava tomada de indignação! Não podia adiar tanta vontade de gritar para todo mundo que podíamos mudar a ordem das coisas. Queria recuperar a voz e o hábito do jus sperniandi. Tantos anos, tantas lutas e o povo brasileiro mesmo diante do óbvio não conseguia transformar sua maneira de agir e de pensar. Cada vez mais desanimados e sem esperanças só sabiam fazer o que sempre fizeram e, agora, com mais frequência: destruir a cidade, enfear as ruas, sujar os espaços de lazer e, mais do que nunca destilar seu mau humor no humano mais próximo. Afinal usar o espaço público – como se fosse seu – já virou um clichê.
A intenção é frisar aspectos chocantes da perda de civilidade que em português mais claro aponta com a falta de respeito pelas normas de convívio social. É constante o atrito entre pessoas que são indiferentes à necessidade de convivência mútua. Nem mesmo se tem a alternativa de apelar aos direitos do consumidor comum na Europa e nos USA. Mas sabem usufruir da liberdade de ir e vir priorizando seus interesses individuais.
Casos concretos envolvem pessoas que por ignorância ou má-fé distorcem prerrogativas de acordo com suas conveniências realizando a apropriação privada do espaço público. É comum ver mesas de bares e restaurantes espalhadas sobre as calçadas ameaçando os pedestres de serem atropelados pelos carros. Mais uma vez, dispõem da liberdade de ir e vir sem se dar conta dos interesses da coletividade.
A apropriação privada é a base da disputa do direito de cada um, anulando o direito de todos. Como explicar senão por esse raciocínio, a defesa dos cães nos elevadores sociais que chegam a urinar e defecar nos corredores dos prédios residenciais? E a sucessão rotineira de fraudes nas contas auditadas dos condomínios? Sem dúvida são procedimentos orientados pela lógica de que a regra é o estelionato e a probidade é a exceção.
As condutas desviantes tornaram-se regra: hoje o sujeito inteligente tem que ter esperteza e o sujeito honesto é anacrônico. Vale notar que esta inversão dos valores acompanha o retrocesso societal. A prática usual dos trambiques torna a quase todos pequenos e grandes “171” (Código Penal) copiando as formas de agir e de pensar dos setores dominantes inseridos na corrupção sistêmica desde os tempos da colonização. Curioso é que muitos conhecem parcialmente o Código Penal e poucos sabem dos Direitos da Coletividade contidos na Lei da Vizinhança do Código Civil (artigos 1277 a 1313). O caminho que se segue é da civilização ou da barbárie?
Há outro aspecto centrado na família contemporânea como um campo fértil de distorção dos valores. A cada nova geração cresce o número de oportunistas que mamam das tetas de seus pais ou daqueles que julgam estar disponíveis para “soltar a mão” financiando seus desejos. Aumentou o esquema de reprodução dos “171” nas famílias: uma quantidade cada vez maior de agregados que demanda o vil metal com tios, avós ou alguém disponível que os ajude. Tudo feito sem o menor pudor como se os mais velhos tivessem que sustentar os mais novos ad eternum.
É fato que ninguém está isento de ser achacado por parentes mesmo que discorde de suas atitudes. Fica-se constrangido e acaba-se por colaborar a contragosto. Já se imita as normas educacionais da Alemanha por aqui, que obrigam os pais a custodiarem seus filhos até o término do doutoramento e em idade avançada. Copia-se o que de pior tem na Europa, pois os trintões e quarentões já se garantem dessa forma por lá. Na Itália são apelidados de “ninis”. Aqui, os jovens são chamados de geração “nem nem” – nem trabalham, nem estudam e nem fazem nada na vida.
Hoje, os laços familiares estão distanciados das antigas relações entre pais e filhos na primeira metade do século XX. Porém, pode-se duvidar que a transição desses núcleos no Terceiro Milênio seja uma alternativa mais avançada. Quem sabe nem pior e nem melhor, pois se trocam seis por meia dúzia. Todo esse processo deve-se à ausência de civilidade, pois a ânsia hedonista e o impulso para o consumo retiraram dessas gerações sem objetivos definidos, qualquer vergonha e convívio respeitoso com o próximo. Não há como escapar da “idolatria do dinheiro”.
Diante da opção pelo jus sperniandi a ordem do dia é a luta política por direitos e deveres firmando o resgate latu sensu à Cidade: normas respeitosas do ir e vir; troca de gentileza entre transeuntes; autenticidade dos afetos; bom trato de funcionários e clientes dos serviços urbanos; estímulo à autonomia individual; respeito pelas diferenças e pela renovação Ética. Essas bandeiras são parte da luta por cidadania e, autenticadas pelo povo, reforçariam os elos de solidariedade do convívio-cidadão. Quiçá um dia se reduzam os truques, os jeitinhos, a hipocrisia e a má-fé por novas condutas. Não é neste país que dizem que Deus é Brasileiro?